Duas grandes eleições nacionais ocorrerão este ano no Brasil, ambas de caráter plebiscitário.
A primeira, oficial e, portanto, de conhecimento público, reedita uma vez mais o fla-flu PSDB versus PT, opondo o legado do presidente Luís Inácio Lula da Silva, bem-sucedido economicamente e promotor de inclusão social num ritmo antes impensável – porém ideologicamente inconsistente e preso de uma realpolitik por demais elástica – à herança do neoliberalismo tropical de Fernando Henrique Cardoso. Esta se encontra ora representada por um candidato que vem de um mau governo em São Paulo, marcado pela repressão violenta aos movimentos sociais e pela obsessão em cortar gastos – segundo algumas fontes, para ‘fazer caixa’ para a campanha –, em detrimento da administração da cidade.
Já a segunda eleição nacional é, na verdade, um plebiscito, que faz ao eleitor a seguinte pergunta: ‘A `grande mídia´ ainda apita alguma coisa?’
Se vencer o ‘Sim’, a vitória de Serra é favas contadas. Pois os principais órgãos de mídia já deram mostras de que entrarão de cabeça na campanha – a favor do candidato peessedebista, é claro.
No decorrer da última semana, a Folha de S.Paulo não apenas intensificou, em prol da candidatura tucana, o tom e o grau de manipulação editorial de muitas de suas matérias, como também o fez, de forma recorrente, com as manchetes de capa (que, como se sabe, atingem um público consideravelmente maior, empoleirado nas bancas de revista a espiar manchetes, em comparação com o volume daquele que efetivamente lê o jornal).
Padrão Globo de qualidade comprometido
Se, enquanto o Rio de Janeiro era assolado pela tragédia das chuvas, o jornal dos Frias preferia destacar, em letras garrafais, a informação ‘fria’ de que ‘Rodoanel reduz tráfego de caminhões em 43%’ (contrapondo-a, logo abaixo, a ‘Por Dilma, presidente manda acelerar obras’), a edição do último domingo abriu mão de qualquer pudor e destacou o lançamento da candidatura Serra à maneira de um anúncio publicitário, com direito a foto nos mais altos padrões da propaganda política, manchete principal e 70% das demais chamadas de capa. Obra digna de um marqueteiro de primeira linha, não protagonizasse a capa de um jornal cujo dístico de inspiração iluminista o proclama ‘um jornal a serviço do Brasil’.
O lançamento oficial da candidatura tucana fez até mesmo o ultimamente mais comedido Estadão cometer um editorial extremamente agressivo contra Dilma, enquanto a Veja manteve o estilo costumeiro. Mas pouparei o leitor de analisar a cobertura do semanário da Abril, que no quesito serrismo é há tempos hors concours.
Também O Globo, sob a orientação tática de Ali Kamel e capitaneada pela dupla de ataque Miriam Leitão e Merval Pereira – este fingindo acreditar até no caso do ‘voto Dilmasia’, o primeiro factóide da campanha –, não apresenta por ora novidades significativas: continua a denegrir sistematicamente a administração Lula, a sonegar-lhe o reconhecimento dos méritos e a exaltar o charme tucano e a excelência das soluções neoliberais, mesmo em plena crise econômica mundial por tal receituário provocada.
O mesmo não pode ser dito das empresas televisivas do maior grupo de mídia do país. Enquanto a Globo News esmera-se cada vez mais em tornar-se uma espécie de Fox News nativa, o Jornal Nacional evidencia que o clima, em relação ao lulopetismo, é de guerra: na edição de sábado, o equílibrio na cobertura da agenda dos candidatos foi para o espaço, com Dilma ocupando cerca de um minuto da grade noticiosa, enquanto a Serra eram dedicados generosos sete minutos. A persistir tal assimetria, o tal padrão Globo de qualidade ficará indubitavelmente comprometido e, espera-se, a atenção da Justiça eleitoral acabará despertada.
Armações e atuações tendenciosas
A partir de agora, é questão de tempo antes da ocorrência potencialmente explosiva do que o professor e articulista Venício A. de Lima chama, em seu livro Mídia: Crise Política e Poder no Brasil (Perseu Abramo, 2006), de Escândalo Político Mediático (EPM), evento recorrente nas eleições brasileiras, que dá vazão a uma ‘crise que não existiria se não fosse na e pela mídia’ e em relação à qual os jornalistas, desrespeitando o preceito constitucional (artigo 5º., inciso VLII) segundo o qual ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’, adotam o que Venício denomina ‘presunção de culpa’ dos envolvidos.
É fato que, ao contrário do que alardeiam os profetas do caos, o engajamento da mídia em prol de um candidato presidencial, não obstante condenável, não é novidade no país, ou sequer uma distorção pós-ditadura militar. O Brasil não começou com Elis Regina, costuma provocar Carlos Heitor Cony, aludindo à curta perspectiva histórica das novas gerações. Pesquisar a eleição que elegeu Juscelino Kubitschek por meio das páginas d’O Cruzeiro é defrontar-se com uma campanha sem tréguas contra o candidato mineiro, assim como livros como Chatô, de Fernando Morais (Companhia das Letras, 1994), permitem auferir o engajamento da cadeia nacional de rádio, jornais (e, posteriormente), TV dos Diários Associados de Chateaubriand no golpe militar e nas eleições presidenciais das décadas imediatamente anteriores.
Em comparação com tal passado, há mais contrapesos à atuação política da mídia no nosso atual momento histórico. Não só a desconfiança em relação à imprensa encontra-se bem mais disseminada como a internet apresenta-se como um território propício ao rápido desvelo das armações e das atuações tendenciosas da mídia.
Hora de tapar o nariz
Mas também aqui a ameaça de uma invasão massiva de trolls (provocadores) profissionais em prol de um ou outro candidato é uma possibilidade imimente, conforme eu havia antecipado em artigo publicado neste mesmo Observatório em 16/10/2009. Os ataques começaram há cerca de duas semanas e, a julgar pelos seus termos, a campanha virtual tende a ser baixíssima.
Em meio a tal atmosfera de turba, espera-se que as campanhas dos candidatos não degringolem para ataques falaciosos. A se basear no início da peleja, trata-se de uma esperança vã.
Dilma Rousseff abriu o discurso de lançamento de sua candidatura tentando pespegar em Serra o rótulo de ‘fujão’ por ele ter se exilado do país no auge da ditadura. Com essa simplificação descontextualizada e inconsistente, a candidata acaba por revelar uma insuspeitada afinidade com o pensamento de ninguém menos do que o general Leônidas Pires Gonçalves, que recentemente, em entrevista concedida à Globo News, afirmou cinicamente que figuras políticas como Leonel Brizola e Miguel Arraes seriam ‘fujões’ e não ‘exilados’, pois, segundo ele, deveriam ter permanecido no país, como se condições mínimas para tal existissem. A candidata lulopetista não precisava descer tão baixo.
As hostes serristas, por sua vez, por ocasião do lançamento da candidatura peessedebista produziram pérolas do nonsense como afirmar que ninguém aguenta mais a autoconfiança excessiva vigente no país e, após oito anos de oposição sem projetos, baseada tão-somente em ataques e no patrocínio de campanhas difamatórias pela imprensa amiga, que ‘o governo do PT’ promove a divisão ‘da nação’. É sério que Serra pretende se eleger utilizando-se dessa estratégia discursiva dúbia para vender-se como o pós-Lula e pregando a diminuição da auto-estima dos brasileiros?
A campanha que enfim oficialmente começa promete fortes emoções. Tapemos o nariz e acompanhemos.
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Jornalista e cineasta, doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog