O professor Umberto Eco de novo espantou o mundo com o vigor falante da sua autoridade intelectual. Desta vez, o ilustre escritor, ensaísta e filólogo mirou o exercício do “direito à palavra”, garantido pela Internet também “aos imbecis”. E provocou polêmicas, nas quais (com atraso prudente) arrisco intrometer-me, para alinhar entre aqueles que estranharam a fala arrogante do professor com quem todos nós já tanto aprendemos.
Era uma quinta-feira, 11 de junho. Umberto Eco estava na Universidade de Turim, para receber o título de doutor honoris causa em comunicação e cultura. E quando chegou a sua vez de falar, soltou o verbo em cima das redes sociais, pelas quais – disse – uma “legião de imbecis” que antes “falavam apenas em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”.
Em crescendo crítico, Eco amplificou as suas já conhecidas restrições às tecnologias da informação. Mas com imprudências semânticas preconceituosas e ofensivas que não se esperariam de um especialista em semiótica e teoria do discurso. E que já escreveu, faz anos, a frase histórica que deu título a um dos seus ensaios: “Quando o outro entra em cena, nasce a ética.”
Em Turim, o discurso foi outro.
“Normalmente”, disse Umberto Eco, “eles, os imbecis, eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”. E foi além. Em jeito de contextualização, lembrou que a TV já havia colocado “o idiota da aldeia” em um patamar no qual ele se sentia superior. Para acrescentar: “O drama da Internet é que ela promoveu o idiota a portador da verdade”.
Graças ao poder difusor das criticadas tecnologias da globalização, a notícia da fala do novo doutor da Universidade de Turim imediatamente correu mundo e gerou efeitos.
Sem o mesmo poder transformador, mas com igual velocidade e alcance universal, também as eventuais postagens dos “imbecis” correm pelos dutos da malha digital – direito e privilégio que, no dizer de Umberto Eco, deveria ser exclusivo dos “não imbecis”.
A notícia da fala de Umberto Eco não nos diz com clareza em que nível de significação ele utilizou a palavra “imbecil”. Mas não foi, certamente, na significação que os glossários da psiquiatria lhe atribuem, para denominar as vítimas da “imbecilidade” – retardo intelectual que encurta a idade mental das vitimas.
Pela terminologia especializado da psiquiatria, “imbecil” é o indivíduo adulto cuja idade mental equivale à de uma criança entre os três e os sete anos.
Mas o termo caiu em desuso na psiquiatria. Atualmente, a clínica psiquiátrica trata as vítimas da imbecilidade como “pessoas portadoras de deficiência intelectual moderada”. E evita a palavra “imbecil”, devido à conotação ofensiva adquirida pelo uso popular do termo, como sinônimo de “idiota”, “estúpido”, “burro”, “ignorante” – uso ostensivamente também assumido na fala do professor Eco em Turim.
Para bradar ao mundo a sua questionável crítica à liberdade de acesso à Internet e ao direito universal de DIZER, o professor Umberto Eco não precisava subir no palanque da arrogância intelectual. E foi o que fez.
Como admirador do professor Umberto Eco, e beneficiário dos seus saberes, lamento profundamente que na cerimônia da Universidade de Turim, pela voz do orador homenageado, tenha falado a arrogância da ciência que tudo sabe, impondo silêncio à humildade da sabedoria que lamenta não saber mais.
(Dou destaque gráfico à frase em homenagem ao poeta e pensador William Cowper, que viveu no século 18 e nos deixou, entre tantos outros, o seguinte pensamento: A ciência é orgulhosa por tanto saber; a sabedoria é humilde por não saber mais.)
Embora silenciado pelo cientista arrogante que falou em Turim, o sábio humilde também existe em Umberto Eco. Sabedoria e humildade que dão tom, forma e conteúdo a um dos textos que compõem o livro Cinco Escritos Morais (“São Paulo, Editora Record, 1998).
É desse texto o seguinte recorte:
“(…) temos concepções universais acerca do constrangimento: não se deseja que alguém nos impeça de falar, ver, ouvir, dormir, ingurgitar ou expelir, ir aonde quisermos; sofremos se alguém nos amarra ou nos mantém segregados, nos bate, fere ou mata, nos sujeita a torturas físicas ou psíquicas que diminuam ou anulem nossa capacidade de pensar. (…) Esta semântica já se tornou a base de uma ética: devemos, antes de tudo, respeitar o direito da corporalidade do outro, entre os quais o direito de falar e pensar.”
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(Conheça outros trechos do mesmo texto de Umberto Eco, que tem como título a frase já citada: “Quando o outro entra em cena, nasce a ética”.acessando a página http://www.oxisdaquestao.com.br/colunas-integra.asp?col=5&post=683 )