Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As focas amestradas e a sorella do Zidane

Se a Copa de 2006 fosse realizada numa piscina, as focas amestradas do Parreira seriam campeãs. O que mais se viu nos gramados, e ainda assim somente nos treinos, sem adversários por perto, foi o Ronaldinho colocar a bola no ombro, no pescoço, no colo, na coxa, colada ao pé e um sem-fim de malabarismos de encantar crianças num circo.


Fomos, vimos, perdemos. Dificilmente encontraremos uma Copa mais fácil do que esta. O Brasil sagrou-se pentacampeão e foi vice-campeão duas vezes enfrentando times de primeira linha nas sete vezes em que disputou as finais. Em 1950 perdeu para o Uruguai, potência do futebol mundial. Em 1958, goleou a Suécia em Estocolmo, depois de passar pela França, em históricos 5 x 2, repetindo o soberbo placar, depois de começar perdendo por 1 x 0. Em 1962, goleou o Chile, por 4 x 2, igualmente na casa do adversário, e foi disputar a final com a Checoslováquia, derrotando-a por 3 x 1 depois de estar perdendo por 1 x 0. Em 1970, depois de derrotar forças tradicionais como Checoslováquia, Uruguai e Inglaterra, goleou a Itália por 4 x 1. Em 1994 e 2002, a final foi contra a Itália e contra a Alemanha, duas seleções já tricampeãs.


Mas em 2006 veio a humilhação. Croácia, Austrália, Japão e Gana foram derrotadas burocraticamente. E a partida contra a França pareceu repetir o pavor que acometera a seleção brasileira na final de 1998.


A sorella do Zidane


Esta copa termina de forma ridícula, decidida com um dos insultos mais rasteiros da língua italiana: falar mal da irmã do outro. Zinedine Zidane, do alto de seus 34 anos, não é nenhuma criança para cair na trapaça de Marco Materazzi.


Não é difícil encontrar uma antologia de insultos à irmã, resquício de um machismo que põe o irmão como guardião da irmã. Para ofendê-lo, ofende-se a irmã dele, esperando-se a reação dele, não a de sua irmã! É do macho que se espera o revide, não de sua irmã, a fêmea pacata que deve ficar em casa aguardando o brutamontes que foi caçar um bisonte, como se ainda vivêssemos na Idade da Pedra Lascada! Mas hoje é preciso tomar outros cuidados: a irmã reage com mais eficiência. Os insultos, como sói ocorrer entre civilizados, são resolvidos no Judiciário e lá o ofensor encontrará um batalhão de advogadas, promotoras, juízas. Em horas decisivas como estas, muito embora se proclame a neutralidade dos gêneros, eles pesam muito. Não foi à toa que foi uma juíza, e não um juiz, a pôr na cadeia toda a cúpula do jogo do bicho no Rio. Também por ser mulher, a juíza Denise Frossard não era cúmplice do mundo judiciário onde tradicionalmente os homens mandavam e negociavam.


Quem sabe as ofensas de Materazzi a Zidane, proferidas no segundo tempo da prorrogação, possam entrar para o clássico Chi l’há detto?, de Giuseppe Fumagalli (Editore Ulrico Hoelpi Milano). Apesar de correntes, principalmente na língua italiana, os insultos à irmã compõem antologia especial das baixarias, mas algumas soam até engraçadas, naturalmente deixando de lado o chatíssimo ‘politicamente correto’ que impede o humor. Eis algumas amostras:


Tua irmã é tão velha que do seio sai leite em pó. Aqui o machismo vem acrescido de preconceito adicional contra os velhos.


Tua irmã é a primeira da fila na classe de Júlio César. Aqui é indispensável certo conhecimento histórico, do contrário pode-se confundir o imperador romano com algum Júlio César. Na Copa de 1986, um dos nossos que desperdiçou um pênalti tinha este nome.


Tua irmã é tão velha que quando lhe pedem a carteira de identidade, ela mostra um papiro.


Mas a ofensa foi outra. O italiano recorreu à clássica e imemorial lembrança da mais antiga profissão do mundo.


A posteriori ou a fortiori


E, suprema ironia, num jogo narrado e mostrado pela mídia até em seus mínimos detalhes – de que a leitura labial será o emblema – foi a primeira vez, na história de todas as Copas, que nem o juiz, nem os bandeirinhas, mas um quarto juiz, sem ver o lance com seus próprios olhos, mas auxiliado por um videoteipe, viu, a posteriori, o lance que mudou toda a partida.


A posteriori, pode. O que não pode é a fortiori. O crítico literário Fábio Lucas estava num cartório do interior de Minas Gerais à procura de um processo. Vendo-o na pilha, pensou em ajudar o atendente e começou a puxar o calhamaço. Acostumado a tantas expressões latinas dos advogados que freqüentavam o cartório, ainda que sem entendê-las, o funcionário disse: ‘a fortiori, não, deixa que eu pego para o senhor’. E ergueu todos os processos acima daquele para que fosse retirado mais facilmente. (De poucas letras, ouvindo ‘a forciori’, que é como se pronuncia a expressão latina que significa ‘com muito mais razão’, achou, por semelhança, que significava à força).


É isso aí, seu Zinedine Zidane. A fortiori, não! Mas a posteriori, pode, nem que seja feito pelo quarto juiz.


Na vida fora do campo, os julgamentos são mais demorados, as punições demoram muito, dificilmente o agressor é expulso e não podemos contar com o quarto juiz. Mas não nos esqueçamos de que a denúncia dos mensaleiros começou com um videoteipe feito por câmera oculta nos Correios!

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O escritor Deonísio da Silva, Doutor em Letras pela USP, é professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra.