Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As memórias de uma guerra suja

 

Enquanto a mídia volta-se para a recém-instalada Comissão da Verdade, chega às livrarias um bombástico livro que pode esclarecer o desaparecimento de militantes da esquerda durante a ditadura militar. Memórias de uma guerra suja é o relato em primeira pessoa do ex-delegado capixaba Cláudio Guerra para os jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto. Em 15 anos, Guerra teria participado de uma centena de mortes como matador e estrategista do Serviço Nacional de Informações (SNI). O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira [22/5] discutiu o papel dos meios de comunicação no resgate da memória dos crimes cometidos pelo Estado entre 1964 e 1985 e a pouca repercussão das revelações deste livro.

Memórias de uma guerra sujalança luz sobre os bastidores das Operações Condor e Bandeirantes e traz novas informações sobre episódios marcantes como o caso Riocentro, o assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten e a morte do temido delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) Sérgio Paranhos Fleury. O livro narra como a equipe de Cláudio Guerra tentou dificultar a abertura política com uma série de atentados a bomba. O ex-delegado comandou uma explosão no prédio do jornal O Estado de S.Paulo e arquitetou um ataque ao Jornal do Brasil que foi desarticulado por ordem do general Golbery do Couto e Silva.

O programa contou com a presença dos dois autores do livro. Rogério Medeiros é fundador do jornal eletrônico Século Diário e trabalhou no Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo, A Tribuna e A Gazeta. Escreveu vários livros, entre eles Um Novo Espírito Santo – onde a corrupção veste toga. Marcelo Netto estudou Medicina até o final do quarto ano, quando foi preso pelo regime militar por 13 meses, nove deles em solitária. Foi repórter e editor no Correio Brasiliense, Folha de S.Paulo, O Globo, Veja e na TV Globo. Em São Paulo, o programa recebeu a jornalista Rose Nogueira, presidente do grupo Tortura Nunca Mais-SP. Durante a ditadura militar, Rose foi presa e torturada durante nove meses, quando seu bebê era recém-nascido. Desde os anos 1970, pauta sua vida pela luta contra o autoritarismo.

Luz no período de trevas

Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines comentou que o livro não pode ficar esquecido porque é “um tremendo safanão” naqueles que acham que a Comissão da Verdade é inútil. “Deste livro sai um Brasil irreconhecível, que só se reconhecerá quando for devidamente apurado o que está contado com tantos detalhes neste livro terrível. É possível que a prioridade da Comissão da Verdade seja desvendar o que aconteceu com os desaparecidos. Mas os corpos incinerados por Cláudio Guerra em uma usina de açúcar em Campos, estado do Rio, jamais serão resgatados. Cabe a nós, e a todos os buscadores da verdade, o resgate de suas histórias”, avaliou Dines. Para Dines, mesmo que parte dos dados seja inventada, esta é uma pauta que precisa ser verificada.

Um dos pontos mais chocantes do livro é o relato da incineração de dez corpos de presos políticos em uma usina de açúcar em Campos, no Norte Fluminense. Entre as vítimas estariam Ana Rosa Kucisnky e seu marido, Wilson Silva. Bernardo Kucisnky, irmão de Ana Rosa, revelou ter receio de que os resultados da Comissão da Verdade não sejam efetivos:“Eu tenho um temor de que, devido àslimitações do estatuto da Comissão, de como ela foi definida, suas atribuições, e àslimitações do meio circundante – a mídia convencional, que não tem muito interesse em fazer disso um assunto – essa Comissão acabe emitindo um relatório por si só importante e, por sua vez, pelo fato de ela ter emitido esse relatório, ter trabalhado dois anos, três anos, nunca mais vá se falar no assunto”.

O programa entrevistou a colunista social Hildegard Angel, filha da estilista Zuzu Angel e irmã de Stuart Angel. Militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Stuart foi barbaramente torturado e morto em 1971. Sua mãe empreendeu uma busca para enterrá-lo dignamente e chegou a ganhar apoio internacional. Cinco anos depois, Zuzu morreu em um mal explicado acidente de carro. Guerra afirma que a morte da estilista foi forjada. Em um emocionado depoimento, Hildegard contou que as informações do livro podem levar a novos dados:

“Esse livro, sobre a minha mãe, não conta grandes novidades. Mas tem uma coisa que abre uma linha de investigação, se for real. É que nas fotos do inquérito tem um coronel Perdigão, que era da repressão; quando se matava, tinha o hábito de os próprios assassinos depois periciarem, fazerem as autópsias dos pseudo acidentes, e isso teria acontecido com a minha mãe. Para mim, que achava tão improvável, tão duro, tão terrível que a minha mãe tivesse sido mesmo assassinada, quando a gente desperta para a realidade… E a maldade não é só de quem pratica, mas da psicopatia generalizada daqueles que apoiaram aquilo”.

O primeiro passo para a verdade

A Comissão da Verdade irá apurar violações aos Direitos Humanos durante a ditadura militar e tem como um dos focos os desaparecidos, como o deputado Rubens Paiva. Em 1971, a casa do deputado foi invadida por um grupo de militares. Rubens passou pelos porões do Exército e da Marinha, onde foi brutalmente torturado para revelar o paradeiro de Carlos Lamarca, líder do MR-8, organização com a qual não tinha ligações.

Vera Paiva, filha do deputado, acredita que os trabalhos da Comissão levarão muitas pessoas a revelar novos fatos. No entanto, parte dos crimes pode permanecer sem esclarecimentos por falta de documentação física:“O Brasil é capaz de encontrar essa verdade, de reconstruir essa memória que nos permita dizer: ‘tortura, nunca mais’”. Na opinião de Vera, corpos podem ser encontrados a partir da história oral.

Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Wadih Damous, é necessário investigar com profundidade as informações contidas no livro: “Esses relatos podem vir a dar alguma pista sobre o que mais queremos, que é o paradeiro dos desaparecidos, uma ferida ainda não cicatrizada na história da democracia brasileira. E também não se deve aceitar de plano tudo o que está sendo relatado. Temos a Polícia Federal, o Ministério Público Federal. Esses órgãos devem, a partir de relatos como esse, iniciar uma investigação”. O jornalista Fritz Utzeri, autor de diversas reportagens sobre a repressão, destacou que os desaparecidos políticos da época da ditadura militar são “uma ferida que não quer fechar” e que as famílias têm o direito de saber em que circunstâncias seus parentes foram mortos.

No debate ao vivo, Dines perguntou a Rogério Medeiros como foram os primeiros contatos com Cláudio Guerra. O jornalista contou que, há 30 anos, havia publicado uma reportagem no Jornal do Brasil que acabou com a aura de combatente do crime organizado que Guerra mantinha no Espírito Santo. Em 2009, um advogado do ex-delegado procurou Medeiros e o levou ao hospital onde Guerra estava internado. Logo recebeu o convite para escrever o livro. Os autores consideraram que o livro só seria verdadeiro se fosse narrado na primeira pessoa e precisaram convencer Guerra a aceitar este formato. Eles chegaram a alertar o ex-matador de que, com a publicação do livro, ele poderia morrer ou voltar para a cadeia, onde cumpria pena pela acusação de ter matado um bicheiro.

Bombas por todo o Brasil

“[Guerra] tinha vontade de mostrar o interior da comunidade de informações. Tinha o oficial e tinha o secreto. Ele era conhecido por um codinome”, sublinhou Rogério Medeiros. Em um primeiro momento, Guerra atuou como matador de integrantes de grupos de extrema-esquerda. Medeiros explicou que, em seguida, o ex-delegado engajou-se em um movimento que queria prolongar a vida do regime militar e precisava de um bode-expiatório: “Para fazer esta passagem, eles precisaram criminalizar alguém. Então, pegaram o Partido Comunista, que não era dessa área que eles mataram antes, e transformaram eles em um grande perigo para o país”.

Os autores do livro contaram que o ex-delegado já sofreu duas ameaças, uma delas há poucos dias. A primeira ocorreu em novembro do ano passado, quando um ex-companheiro mandou um recado a Guerra de que ele “já estaria fedendo”. “A partir daí, nós informamos ao Ministério da Justiça, à Polícia Federal, que o livro estava ainda em elaboração. Nós aceleramos a elaboração do livro com medo de acontecer alguma coisa. Muitos dados ainda precisam ser acrescentados à edição do livro”, disse Marcelo Netto.

Por falta de tempo, não foi possível inserir nesta primeira edição o vasto material fotográfico colhido pela equipe de pesquisa, por exemplo. Netto alertou que as autoridades precisam agilizar a investigação sobre as informações de Guerra porque, além de ameaçado, o ex-delegado está com problemas de saúde. “Olhando nos olhos dele esses anos eu cheguei à conclusão de que ele está dizendo a verdade”, disse Netto.

Convertido na prisão à igreja Assembleia de Deus, Guerra hoje é pastor. “Ele tem consciência de que vai viver uma vida muito complicada a partir do que ele contou no livro, vai ter um resto de vida cheio de polêmicas, acusações. Mas ele está tranquilo, consciente de que o papel dele é ajudar a esclarecer o que se passou. Ele quer ajudar aComissão da Verdade, ele quer se colocar àdisposição”, contou o jornalista. Netto diz que Guerra quer “ficar em paz consigo mesmo” e que relatou que seu maior objetivo de vida é visitar Israel.

Disputa interna

Dines perguntou sobre a rivalidade mostrada no livro entre os grupos de extermínio civis e militares. Marcelo Netto contou que, quando os militares passaram a combater a guerrilha urbana, não eram capacitados para este tipo de combate. “As técnicas novas exigiam investigação, que é uma coisa própria do trabalho policial”, disse o jornalista. Competentes investigadores, como Guerra e Fleury, foram procurados para prestar serviço como agentes secretos. “Houve momentos em que houve conflitos”, confirmou.

Para Rose Nogueira, Cláudio Guerra é assassino contumaz e réu confesso. “Ele cometeu crimes permanentes, de sequestro e de desaparecimento de corpos. Ele cometeu crime de tortura, de execução sumária. Esses crimes são de lesa-humanidade, são imprescritíveis. Esse livro muda toda a história. Tem muitos fatos aqui que são congruentes, que batem com aquilo que a gente sabia”, sublinhou Rose. A representante do Tortura Nunca Mais ponderou que o relato de Guerra situa a esquerda como uma quadrilha que se aproveitava do dinheiro dos empresários, visão afinada com a política de Estado dos anos de chumbo. Rose ponderou que o direito à resistência é um dos Direitos Humanos: “Quando se fala em luta armada, eu penso que quem fez contra o povo brasileiro foi a ditadura militar. Nós fizemos a luta de resistência”. 

[Lilia Diniz é jornalista] 

 

 

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Mapa a ser seguido, verificado e chorado

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 640, no ar em 22/5/2012

Um livro para não ficar fechado nem esquecido. Um tremendo safanão naqueles que acham que a Comissão da Verdade é inútil e o passado, passou.

Memórias de uma guerra sujaé a confissão de um carrasco a serviço da repressão política – Cláudio Guerra, ex-delegado do Dops – a dois jornalistas experimentados, Marcelo Netto e Rogério Medeiros. Um documento cuja veracidade ainda precisa ser comprovada. Porém, mesmo que seja inventado no todo ou em parte, é uma pauta minuciosa, mapa da casa de horrores para ser seguido, verificado e chorado.

Trata-se de um dos relatórios mais tenebrosos já aparecidos sobre o período final do regime militar, quando a linha dura manifestava tanto ódio à distensão prometida pelo general Geisel quanto àqueles que pegaram em armas contra o regime.

Deste livro sai um Brasil irreconhecível que só se reconhecerá quando for devidamente apurado o que está contado com tantos detalhes. É possível que a prioridade da Comissão da Verdade seja desvendar o que aconteceu com os desaparecidos. Mas os corpos incinerados por Cláudio Guerra numa usina de açúcar em Campos, estado do Rio, jamais serão resgatados. Cabe a nós, e a todos os buscadores da verdade, o resgate de suas histórias.

Este Observatório da Imprensa compromete-se em levar esta busca até o fim.

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A mídia na semana

** Enquanto a CPI do Cachoeira tenta incriminar jornalistas, os jornalistas revelam como os parlamentares estão preparando as pizzas. O repórter-cinegrafista do SBT, Joaquim Alves dos Santos, deveria gravar imagens da CPI, mas preferiu mostrar textos: com a teleobjetiva registrou a troca telefônica de mensagens de texto nas quais o deputado Cândido Vaccarezza promete blindar o governador Sérgio Cabral Filho. Vaccarezza agrediu o decoro, a gramática e a busca da verdade.

** O olho vivo de cinegrafistas e fotógrafos de Brasília não vem de hoje. Em 2007, um fotógrafo do Globo, Roberto Stuckert, registrou uma troca de mensagens entre os ministros do STF, Carmen Lucia e Ricardo Lewandowski. Nos textos, os dois comentavam, inclusive, os seus votos. Em 1985, durante uma sessão na Câmara dos Deputados, o fotógrafo Luciano Andrade flagrou alguns políticos votando por colegas que não estavam no plenário e ficaram conhecidos como “os pianistas do Congresso”. A punição pela quebra de decoro foi uma censura, por escrito, nada mais.

** Um dos principais vilões da conferência Rio+20 será certamente o automóvel, que congestiona as cidades, polui a atmosfera e prejudica o transporte público. Mas a indústria automobilística é uma das maiores financiadoras da mídia. Este comercial estrelado pelo técnico Bernardinho está se tornando um clássico sobre as contradições dos meios de comunicação. Depois disso, como explicar que a mídia é a favor do controle das emissões de gás carbônico?

** Nossa agenda de preocupações foi enriquecida no domingo (20/5) com as revelações da apresentadora Xuxa Meneghel sobre os abusos sexuais que sofreu quando criança por parte de adultos próximos da sua família. Quase meia hora no Fantástico, oito minutos no Jornal Nacional de segunda-feira (21), apoio da ministra de Políticas para Mulheres, as confissões de Xuxa tomaram conta do país. Logo surgiram os críticos contumazes da Globo alegando que foi uma jogada para aumentar a audiência. Mas foi um dramático alerta para a violência que campeia não apenas nas ruas, mas também no recesso dos lares da classe média.