O papa Bento 16 socorreu-se de metáforas dos Evangelhos, principalmente do de São João, para fazer sua homilia de 35 minutos na missa solene (domingo, 24/4) com que inaugurou seu pontificado.
Os ouvintes ali presentes riram quando ele disse que naquele momento não apresentaria seu programa de governo. Pode ter sido proposital tal inserção nos prolegômenos da homilia. Afinal, o primeiro-ministro italiano Sílvio Berlusconi, ao contrário da quase unanimidade obtida pelo cardeal Ratzinger junto aos 114 cardeais que o elegeram papa, atravessa séria crise política.
Os desavisados, sobretudo os desinformados pela mídia, podem achar que o funeral de João Paulo II durou demais e já era hora de revelar tudo. Funerais solenes costumar durar muito tempo. Como nos informa Alberto Costa e Silva em Francisco Félix de Souza, mercador de escravos (co-edição Nova Fronteira e UERJ), o mercador morreu em 8 de maio de 1849, aos 94 anos, depois de comercializar escravos africanos durante várias décadas. E em outubro os funerais ainda não tinham terminado. ‘Trezentas amazonas a dançarem diariamente na praça de Ajudá, e sacerdotes a imolarem pombos, galinhas, capotes, patos, porcos e bodes, com muita cachaça, e muitos gritos, e muitos tiros para o ar.’
Boa didática
Começa que para a Igreja a morte é uma das principais metáforas. E foi muito invocada nessa acepção: passagem, encontro com o Pai, subida ao Céu etc, aliadas a eufemismos que toda a Humanidade, nas mais diversas línguas, adota para esconjurar seus terríveis poderes. Na língua portuguesa, temos ‘passou desta para a melhor’ (chique) ou ‘bateu as botas’, ‘esticou as canelas’, ‘abotoou o paletó’ (vulgares).
Em sua homilia ou sermão, citando o recente passamento do papa que o antecedera, Bento 16 recorreu a citações latinas e disse – daí, sim, sem ironia – que João Paulo II chegou ao céu acompanhado dos santos de todos os séculos. Naturalmente não houve qualquer ironia ao fato de João Paulo II ter canonizado mais em seus 26 anos de pontificado do que todos os papas que o antecederam.
Seguindo em louvável didática, explicou aos fiéis que nenhum dos 115 cardeais sabia, ao começar o conclave, qual deles seria o escolhido. E que agora que fora ele, Ratzinger, queria dizer que não estava só, que não se sentia só e que precisava de todos para levar adiante o pontificado que iniciava.
Ovelhas desgarradas
De todas as metáforas, duas foram postas em destaque: o pescador e o pastor. Dos Evangelhos citados, o que mais pôde ser invocado para os propósitos do Sumo Pontífice foi o de São João. Por isso o papa referiu a pesca milagrosa de 153 grandes peixes, feita por São Pedro, DEPOIS de Jesus ter ressuscitado. O mestre aparece sem se identificar. É João quem o identifica e narra isso de um modo sutil: ‘Disse então a Pedro aquele discípulo que Jesus amava: é o Senhor’. Pedro não tinha percebido! Jesus estava com fome, pediu peixes e os convidou a almoçar. Como observou Frei Betto num artigo, o Jesus ressuscitado é uma pessoa sempre com fome, quer almoçar ou cear.
A figura do pescador é uma das mais caras metáforas do papado e ele recebe na coroação justamente o anel do pescador. Mas que pescador tem anel? É um anel que lembra que o papa é pescador!
A outra metáfora vem da pecuária. O papa é pastor. E vai atrás da ovelha desgarrada para trazê-la ao aprisco. Na liturgia católica, o próprio Jesus é representado, não mais como pastor, mas como o próprio cordeiro que é sacrificado. Daí a invocação ‘Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo….’, seguida de diversos pedidos nas preces da missa.
Investimento rentável
A mídia tem contribuído muito para informar o que se passa na Igreja. Mas incorre com freqüência em muitos equívocos. Celibato e ordenação de mulheres são dois exemplos: são providências dadas como certeiras para recuperar o rebanho católico, que está abandonando a Igreja em grandes levas.
Ora, os protestantes também enfrentam o mesmo problema. E contam com mulheres pastoras há muito tempo, sem contar que aboliram o celibato logo no início. Precisamos formular corretamente os problemas, melhor caminho para começar a resolvê-los.
A mídia tem grande responsabilidade nessas questões. Outros temas são os preservativos e os métodos de contracepção: será que os católicos se importam realmente com o que papa acha dessas duas questões?
São necessárias novas prospecções: mudou no Brasil, há muito tempo, o jeito de ser católico, que já era diferente do europeu. Nossa mídia traduz, transcreve, cita, mas quase não há reportagens sobre o catolicismo no Brasil. Ele vem mudando muito, principalmente nas duas últimas décadas. E a mídia está nos devendo muito no tema ‘catolicismo: práticas brasileiras’.
Concluindo sua homilia, o papa prometeu que o investimento no catolicismo vale a pena: ‘Receberemos cem vezes de volta’. Também esta é uma metáfora tirada dos Evangelhos: quem dá, recebe cem vez mais.
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É estratégica a substituição de sermão por homilia. Sermão ganhou sentido pejorativo no português coloquial. Mas como faremos com os Sermões do Padre Vieira? Diremos ‘Homilias’ de Padre Vieira? Mais uma palavrinha que merece reflexão menos ligeira.