Como livroAnti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia (1972), de Gilles Deleuze e Félix Guattari, compartilho o argumento de que o delírio, a loucura, os padrões de normalidade, os desvios diversos, tudo que nos toca, enfim, sob o ponto de vista de nossos comportamentos prováveis e improváveis, só pode ser analisado devidamente em planos histórico-mundiais, de sorte que a perspectiva individual-familiar não apenas não explica nada como serve para isto mesmo, não explicar, mas confundir, exatamente porque não queremos encontrar as causas sociais para comportamentos violentos que são sempre coletivamente cultivados e experimentados.
Não queremos, assim, saber que em menor e maior medida qualquer tipo de crime cometido, por mais abjeto que seja, tem sempre uma autoria que é minha, que é sua, que é nossa, posto que nada é individual e nada está confinado, como causa, ao limite restrito do triângulo edípico pai, mãe, filho. Tudo é coletivo, donde é possível deduzir que tudo tem a ver com o rumo que estamos dando e imprimindo, como assujeitados sujeitos sociais, às instituições que, em conjunto e em equilíbrio instável, regulam, dificultam, canalizam, domesticam ou liberam ora nossas potências amorosas, cooperativas, criativas, intelectuais, solidárias; ora, por outro lado, nossos comportamentos e atos assassinos, indiferentes, arrogantes, egoístas, bárbaros, belicistas, genocidas.
Deliram, assim, as classes sociais, as tribos, as nações, as instituições, as etnias, os sexos, as economias, os exércitos, sempre em dependência intrínseca em relação aos rumos e tendências que efetivamente orquestramos para as diversas formas de identidades que historicamente produzimos, sendo que somos igualmente nós, coletivamente, que estabelecemos as formas como as etnias, as classes, as nações, os indivíduos, os povos se relacionarão uns com os outros, se serão relações nas quais prevalecerão trocas afetivas marcadas pela cooperação, pelo convívio amigo e amoroso; ou, ao contrário, se serão relações em que o que dominará deve ser o preconceito, o racismo, a indiferença, a hierarquia, a exclusão e assim por diante.
Uma violência inominável contra milhares de crianças
Uma simples olhada minimamente objetiva para a história das grandes civilizações e para antes de tudo o nosso presente histórico demonstra claramente que tipo de delírio civilizacional estamos diariamente cultivando, alimentando e fazendo prevalecer no cotidiano de nossas vidas. Basta ter olhos para olhar e ouvidos para ouvir, sem as barreiras que nós mesmos produzimos para não ver e não escutar, que tudo fica óbvio, às claras, sem mistificação, sem ilusão, sem equívocos analíticos, emocionais, econômicos, sociais.
Sob esse ponto de vista, algumas perguntas são esclarecedoras, pois são perguntas e ao mesmo tempo são respostas, como as seguintes: Quantas guerras acontecem neste momento no mundo? São guerras religiosas, étnicas, econômicas, familiares? São guerras entre nações, entre povos, entre oligarquias que concentram riquezas, humilham, brigam e matam populações vulneráveis, cujas vidas são manipuladas e exploradas em nome da riqueza de poucos e da miséria, desalento, sofrimento, abandono e mortes de muitos? Quais são os perfis das pessoas que morrem nessas guerras: são soldados, são generais, são presidentes, são ditadores, são oligarcas, ricos, pobres, crianças, mulheres, trabalhadores, homens, velhos?
Essas e muitas outras formas de guerra que enxameiam o nosso cotidiano são em razão da natureza humana, em tese essencialmente preconceituosa, belicosa, terrorista, como argumentou o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, na cerimônia de recebimento do Prêmio Nobel da Paz; ou são consequências factíveis do modelo de civilização que produzimos, no qual poucos humanos se refestelam com a riqueza coletivamente produzida, como se fosse legítimo direito divino, demonstrando claramente seus perfis cínicos, egoístas, preconceituosos, violentos, excluidores, assassinos?
Por que damos tanto destaque ao massacre cometido por um perturbado jovem, Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, que matou (numa escola pública de Realengo, Rio de Janeiro) impiedosamente 12 crianças no dia 7 de abril e feriu, com tiros, muitas outras? E, ao mesmo tempo, não apenas não noticiamos, assim como ignoramos totalmente o sofrimento sem fim das milhares, senão milhões, de vítimas das guerras que apenas um único país, os Estados Unidos, desencadeiam pelo mundo afora, matando com uma violência inominável milhares de crianças?
Uma guerra não declarada entre crianças ricas e pobres
Onde estão as crianças mutiladas, famintas e órfãs da Palestina? Por que não são notícias? Onde estão as crianças que nascem deformadas em consequência da exposição de suas mães às irradiações provocadas por plutônio empobrecido lançadas, através de mísseis, por aviões americanos no Iraque? Por que não são notícias? Onde estão as crianças mutiladas e por que muitas outras estão morrendo no Afeganistão, no Paquistão, na Somália, na Líbia, por bombas lançadas por aviões americanos não tripulados que têm o sugestivo e canalha nome de Predadores? Quem são os predadores que matam as crianças do mundo? Por que não são notícias? Como é possível que aviões não tripulados, produzidos e utilizados para as chamadas “intervenções humanitárias”, recebam o cínico nome de Predadores?
Isso não diz tudo? Onde estão as notícias e as “inteligentes análises de especialistas”?
Voltando ao caso brasileiro, por que não foram notícias as causas das misérias e abandonos sofridos pelas crianças assassinadas por Wellington Menezes de Oliveira? Por que não são notícias os implacáveis atiradores de muitas outras balas cotidianas que matavam desde antes aquelas crianças agora assassinadas definitivamente por Wellington de Oliveira? Por que não falamos das assassinas balas da pobreza, da moradia precária, insalubre, que matam as crianças do Brasil? Por que não são notícias as balas de um sistema de saúde perverso, com estruturas sucateadas para (não) servir e ajudar a matar nossas crianças pobres e, por outro lado, com luxuosos prédios e recursos humanos e tecnológicos disponibilizados para as poucas crianças ricas?
Por que não são notícias as balas das causas de uma educação pública sucateada, as quais são desfechadas diariamente contra as crianças de praticamente todas as escolas públicas do Brasil? Por que não é notícia o fato de que é o governo que banca a saúde e educação privadas para as crianças ricas do Brasil, num contexto em que sempre faltam recursos para a saúde e educação públicas? Quer dizer que a saúde e educação privadas não se sustentam por elas mesmas? Quer dizer que ambas, a saúde e a educação privadas, só são possíveis, no Brasil, às custas de uma educação e saúde sucateadas para as crianças pobres? Então são as crianças ricas que têm segurança, luxo, saúde e educação bancadas pelo o povo brasileiro que estão atirando contra as crianças pobres? Existe, no Brasil, uma guerra não declarada entre crianças ricas e pobres? Por que não é notícia?
A necessidade de repensar/refundar o Brasil
Ironias à parte, a verdade é uma só: as crianças pobres do Brasil e do mundo estão sendo sistematicamente assassinadas, assim como seus respectivos pais, adultos abandonados. Não existe trauma familiar que dê conta de explicar qualquer forma de violência outra que surja desse contexto de miséria, exclusão, violência e desigualdades sociais do Brasil e do mundo. É inútil, portanto, qualquer tentativa de rastrear a biografia de Wellington Menezes de Oliveira, com o objetivo de entender suas motivações para um massacre tão injustificável, se não relacionamos o seu massacre com o massacre de que é vítima as crianças pobres do mundo.
Pelo menos em relação ao massacre de crianças na escola de Realengo, no Rio de Janeiro, já sabemos quem é o criminoso. E em relação aos massacres diários de que são vítimas as crianças do Brasil e do mundo, quem são os criminosos autores? Quais são as suas motivações?
Incrível mesmo é o fato de que conseguimos transformar em normal e, mais do que isso, conseguimos, com nossas atividades e trabalhos diários, fazer com que este absurdo, violento, assassino modelo de civilização em que vivemos – que não perdoa nem a infância – continue existindo e sendo produzido e reproduzido por todos nós, seja com nossa participação direta, como beneficiários desse modelo, seja com nossas omissões e ignorâncias em relação às causas e perversos motivos genocidas que o mantêm de pé, imperiosamente.
Incrível igualmente é o fato de admitirmos um sistema de comunicação que alimenta a ignorância dos povos pela simples razão de que não noticia nada que realmente é de interesse dos povos, e a partir do ponto de vista destes últimos. Incrível e criminoso é, como brasileiros, permitirmos um sistema de comunicação controlado por clãs que se beneficiam da miséria de nossa infância para concentrar riquezas, egoísmos e indiferenças e ao mesmo tempo produzir, por exemplo, uma programação televisiva que não tem outro objetivo senão o de manter os pais de nossas abandonadas crianças ignorantes das razões de seus próprios abandonos.
De qualquer forma, considerando tudo que vi e li nos meios de comunicação sobre o massacre de crianças e adolescentes da Escola Municipal Tássio da Silveira, em Realengo, Rio de Janeiro, a mais sensata, consequente e inteligente, porque a que mais aponta perspectivas, é a do tio de uma das adolescentes assassinadas, o qual, diante de um acontecimento tão trágico, chamou-nos a atenção para a necessidade de repensar/refundar o Brasil. Se quisermos ser honestos, e por consequência solidários e igualmente consequentes, diante de uma tragédia como a acionada por um jovem estilo serial killer, penso que devemos partir do desafio posto por esse anônimo personagem, com a condição de propor – porque o Brasil não pode nada por si só – que sua perspectiva seja globalizada.
Desejos de coletivas felicidades
Paremos o mundo killer que estamos, como psicopatas, produzindo e reproduzindo! Paremos com o sistema político-econômico serial killer; com o clã midiático killer que nos infesta de pontos de vista de serial killers através de nosso “espetacular” cotidiano serial killer. Paremos com tudo e comecemos de novo, a partir da participação inclusiva, direta e protagonista dos povos do mundo, sem guerra, sem paz de cemitérios, utilizando a desarmada a(r)ma do diálogo entre iguais, sem hierarquias, com cooperação, justiça e imbuídos do claro objetivo de superar todo e qualquer sistema social killer, a fim de construir uma civilização trans-humana, de biodiversidades florais, cujos usos não serão para homenagear mortos assassinados, mas vivos através de vivos, numa civilização de igualdades econômicas e multiplicidades comportamentais, sem, conforme o poeta Oswald de Andrade, prostituição, loucura e penitenciária, no matriarcado de um mundo em que os povos possam finalmente produzir a criativa linguagem de seus desejos de coletivas – infantis, adolescentes, jovens, adultas, idosas – felicidades.
******
Poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo