A seriedade de princípios e a lisura da conduta de um homem público – bem como de qualquer ser humano adulto – devem obedecer aos ditames de sua consciência, mantendo, com correções pontuais, consistência ao longo do tempo e recusando-se a variar súbita e frequentemente de acordo com as circunstâncias e o julgamento do meio externo – do contrário, estaremos diante de um canastrão, que se utiliza de um discurso ético como meio de promoção pessoal mas não se importa verdadeiramente em segui-lo.
Essa é uma das razões que fazem com que a reação ‘pró-ativa’ de Fernando Gabeira (PV-RJ) ante a revelação de que cedera passagens de sua cota congressual para parentes viajarem ao exterior seja muito mais hipócrita – e desmistificadora de sua pantomina pública – do que a de outros parlamentares, até mesmo de Michel Temer.
Gabeira não é nenhum ingênuo e é muito bem preparado intelectualmente. Quem é há tempos familiarizado com seus escritos sabe que ele é capaz de analisar em profundidade as implicações éticas de uma situação e tem uma visão extremamente crítica da mídia. Se se deixou ser alçado por uma certa imprensa ao posto de Moralizador-Geral da República foi porque o quis; se prefere manter o circo em movimento, fazendo questão de agendar com antecedência mais um número de moralismo na Câmara, logo após ser flagrado com a mão na botija, é porque quer extrair dividendos políticos do picadeiro. Como diz o belo samba de Nelson Sargento, não passa de um falso moralista.
Sucesso de público e crítica
Discordo dos que, como o jornalista Luís Nassif, consideram a festa com as passagens aéreas um pecadilho menor, ‘festival de irrelevâncias’. O fato de o escândalo ser incomparavelmente menos danoso aos cofres públicos e ao bom funcionamento da democracia do que os megaesquemas de corrupção e ‘o lobby descarado no meio parlamentar’ não o torna inócuo. Tampouco a constatação de estar sendo explorado pela ‘grande imprensa’ o transforma em irrelevante, como quer fazer crer Nassif, no que interpreto como efeito colateral de sua heróica porém desgastante batalha com a Veja.
Instrumentalizados para fins escusos, os clamores éticos deixam de sê-lo e em seu contrário se transformam. Esse truísmo pede que se filtre com olho crítico toda e qualquer acusação de corrupção – particularmente aquelas que têm como origem as corporações de mídia, pois comprometidas com o grande capital. Isso posto, é preciso ter claro que a idéia de que, por conta de distorções e exageros no comportamento da imprensa, devamos ser tolerantes com desvio sistemático e mau uso de dinheiro público, é um pressuposto sem sentido e uma distorção axiológica inaceitável, que vão contra o aprimoramento da democracia no país.
É fato que setores da ‘grande imprensa’ tornaram-se useiros e vezeiros em explorar a mais improvável suspeita de corrupção, não raro de forma leviana e quase sempre com um moralismo simplista, neoudenista, que cala nos estratos médios mais suscetíveis à mídia corporativa; é fato também que esta tem se mostrado, com frequência, francamente tendenciosa, com grande interesse pelo governo Lula e pouquíssimo ou nenhum pelas administrações peessedebistas do Sul/Sudeste (Serra, nessas reportagens, só como sinônimo de montanha).
Desse cadinho de mau jornalismo, escândalo fácil e interesses corporativos tomou forma a onda de neomoralismo da qual Gabeira despontou como estrela. Apagou o baseado, vestiu um terno por cima da famosa tanga e, remodelado segundo o figurino peessedebista, trocou Ipanema por Irajá. No caminho, enquanto fingia não ver o valerioduto e os desmandos do governador paulista, ia bradando impropérios contra a corrupção no governo federal. O sucesso foi tanto que, após enfrentar o Severino (lembram-se?), veio a glória: tornou-se capa da Veja, que o alçou ao posto de grilo falante da moral nacional.
Reações não se limitam à hipocrisia
Atitude mais digna do que Gabeira & os Falsos Moralistas teve a deputada Luciana Genro (PSOL-RS), que, arguida quanto às passagens de sua cota cedidas ao delegado Protógenes Queiroz – que fora protagonizar um debate numa universidade do Sul –, defendeu o que fez, argumentando que o uso da cota para fins políticos estava previsto no regimento. Confesso que, na hora, me decepcionei com sua resposta, pois considerei (e ainda considero) que traduz uma profunda incompreensão do sentimento popular em relação às benesses usufruídas pelos membros do Congresso, comparadas à dureza da vida da grande maioria dos brasileiros. Mas, ante o festival de hipocrisia e falta de caráter que se seguiu, vejo-me obrigado a reconhecer que declaração da deputada é um oásis de coerência.
A parlamentar gaúcha se diferencia de Gabeira, em relação a esse episódio, em dois aspectos: primeiro, porque, ao invés de desrespeitar o regimento e simplesmente surrupiar suas cotas para o turismo familiar, utilizou-as de acordo com as normas internas, alegando que se deixasse de fazer uso das passagens que têm direito para fins políticos sem que os demais congressistas adotassem o mesmo procedimento estaria criada uma assimetria prejudicial ao seu partido; segundo, e mais importante, porque, ao contrário de Gabeira, recusou-se a adotar uma ética dupla, que passa a considerar o uso das passagens errado somente a partir do momento em que a mídia o descobre.
O que é ultrajante nesse caso das passagens aéreas é que elas são claramente um supérfluo, um mimo percebido pela opinião pública como algo desnecessário, dado o fato de que os parlamentares a distribuem, a rodo e sem respeitar os preceitos regimentais, a terceiros (e há suspeitas de que as comercializariam com agências de viagens).
Considero Eliane Cantanhêde uma das mais tendenciosas e frequentemente equivocadas colunistas em atividade. No entanto, em relação a esse caso, concordo com a jornalista da Folha de S.Paulo: é preferível discutir o aumento de salários dos congressistas (que, pelo princípio da isonomia entre os três poderes, equiparia seus vencimentos aos dos ministros do STF), desde que sejam cortados TODOS os demais benefícios. Mas é claro que a maioria dos parlamentares, cientes da leniência na fiscalização, tende a descartar o desgaste que tal discussão provocaria, preferindo continuar chafurdando no pântano do mau uso do erário, encobertos pelo cipoal de verbas diversas.
‘Política não se limita à Ética, mas também não prescinde dela.’ Foi meditando sobre essa frase, que lera horas antes no blog O Descurvo, que me dispus a escrever este artigo. O sentido que ela tem no texto de Hugo Albuquerque, ao menos como eu a compreendi, prioriza a interpretação de que há aspectos da política que transcendem a ética, mas que esta não deve jamais ser negligenciada.
No entanto, Gabeira, com seu moralismo espalhafatoso e interesseiro, permite ler a frase de outro modo: que fazer política não se restringe a explorar a ética, pois, inerente à Política, a verdadeira Ética, como o oprimido de que nos fala Freud, retorna para deixar o hipócrita nu em praça pública.
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Jornalista, cineasta, doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense; mantém um blog aqui