A confusão entre fato e ficção causava crises na cultura americana. Não causa mais. Agora ela é considerada um aspecto novo, embora desconfortável, da cultura americana com o qual as pessoas precisam aprender a lidar.
É o que ocorreu quando jornalistas e supostos escritores de não ficção foram apanhados inventando coisas: em 1998, descobriu-se que Stephen Glass, colaborador da New Republic, uma publicação de opinião, havia pura e simplesmente inventado um grande número de seus artigos supostamente baseados em fatos. Ele foi demitido e deixado no ostracismo. Cinco anos depois, a descoberta de que Jayson Blair, repórter do New York Times, tinha fabricado algumas de suas histórias provocou um clamor. Não só Blair foi sumariamente demitido do jornal, mas sua violação da ética causou a queda do editor do NYT na época, Howell Raines. E três anos depois, James Frey, autor do best-seller de memórias A Million Little Pieces, admitiu que havia mentido em várias passagens cruciais de seu livro. Embora tenha publicado outro best-seller em seguida – graças à controvérsia provocada pelo primeiro –, sua reputação jamais se recuperou.
Esses escândalos não abalaram somente o establishment jornalístico. Eles provocaram uma sublevação em toda a sociedade culta. Mas as coisas logo voltaram ao normal. Os três incidentes foram condenados e descartados como aberrações – resultados de uma combinação combustível de caracteres defeituosos e prazos apertados. Editores e redatores prometeram ser mais vigilantes no futuro.
Na crista da onda
O futuro é agora, e a vigilância já não é a senha. A acomodação, sim. Nos últimos meses, a revista Rolling Stone se desculpou por publicar matéria sobre uma mulher que fora violentada por um grupo numa casa de fraternidade da Universidade da Virgínia – evento que, conforme se verificou, não existira. Algumas semanas depois, Brian Williams, famoso apresentador de televisão, se desculpou por dizer que estava num helicóptero americano alvejado sobre o Iraque quando, na verdade, não estivera no helicóptero. Depois disso, veio à tona que Williams pode ter fabricado outros casos quando dizia estar no meio de algum acontecimento dramático.
Williams foi suspenso, mas o editor da revista não. Nem demitido foi. Uma tempestade de indignação seguiu os dois incidentes, mas caráter falho e prazo impossível não foram culpados. A culpa foi atribuída à cultura em que a experiência pessoal se tornou a pedra de toque da verdade.
No caso da matéria da Rolling Stone, muitos teorizaram que a falha fundamental da revista na checagem dos fatos foi não pressionar a mulher que lhes contara inicialmente a história falsa para provar o que dizia. E pareceu que a revista considerou mais importante poupar os sentimentos da moça e respeitar seu transbordamento emocional do que submetê-la ao que foi visto, na ocasião, como uma cruel verificação dos fatos. Apesar de a condenação de Rolling Stone ser geral, havia no seu âmago uma silenciosa deferência pela extrema sensibilidade da revista. Talvez por isso ninguém esteja insistindo para o editor da revista, Will Dana, ser demitido.
Brian Williams foi energicamente denunciado e escarnecido. Mas a hostilidade a ele aparentemente teve menos a ver com suas mentiras que com o fato de que, como poderoso apresentador de notícias em rede, ele havia alcançado um nível de celebridade e influência que tornara o fato intolerável. Os críticos se concentraram na sua celebridade. Sentindo-se no centro das notícias, eles explicaram, Williams veio a acreditar que estava no centro dos acontecimentos. Sua personalidade havia se tornado a realidade fundamental. Enquanto fiel a seus sentimentos, a falta de fidelidade aos fatos seria irrelevante. E, de fato, ninguém poderia dizer quais foram as consequências negativas de suas mentiras. Talvez por isso ninguém esteja pressionando a NBC, para a qual Williams trabalha, para encerrar a investigação e resolver a situação dele.
Há uma sensação de que, tanto no caso da Rolling Stone como no de William, condições culturais causaram suas infrações e que, como as condições culturais estão disseminadas e profundamente enraizadas, tanto a revista como o apresentador deveriam ser considerados traços de um panorama em transformação, e não sintomas de uma doença. Vivemos uma época em que o romance praticamente desapareceu nas memórias, que praticamente substituíram o romance. Os chamados docudramas estão na crista da onda. As pessoas operam de trás de numerosos pseudônimos na web, e virais tornam fácil ignorar fatos impopulares e pouco entusiasmantes. Se arte e vida colapsaram uma na outra, não podemos esperar que estilos culturais como não-ficção e reportagem jornalística sustentem padrões de objetividade factual.
Direito constitucional
É dispensável dizer que, se os jornais e outros órgãos da mídia abandonassem seu compromisso com a verdade factual, a sociedade rapidamente se desmancharia. A autoridade da mídia para desmascarar o poder, expor abusos sociais e políticos, impedir que os poderosos mintam para os sem poder seria completamente desacreditada. A própria ideia de inventar fatos versus dizer a verdade deixaria de existir. Cobiça, injustiça e atrocidade se refestelariam. Leis e mentiras seriam intercambiáveis.
Quando minha querida amiga Janet Malcolm, uma das maiores escritoras do país, sugeriu maldosamente num ensaio recente que jornalistas tinham todo o direito de ser criativos com os fatos, e que os que não inventam fatos é por falta de imaginação para tal, a maioria das pessoas ficou horrorizada. Mas, afora alguns surtos de indignação no Twitter, ninguém apresentou o argumento contrário. O que Malcolm estava realmente fazendo era testar a fidelidade de jornalistas a padrões que eles consideram dados, mas que estão lentamente erodindo. O que seu ato de provocação provou foi que a maioria dos jornalistas estava ocupada demais falsificando seu perfil no Facebook para defender seu compromisso com a verdade por trás das aparências.
Afinal, se eu lhes disser que tudo o que escrevi neste artigo é falso, e que nenhum dos eventos que descrevi ocorreu, e que escrevi isto porque senti a verdade por trás dele, quem são vocês para questionar minha paixão e minha fidelidade a minhas próprias emoções? Se vocês me questionarem ou desafiarem, feririam meus sentimentos, e não têm o direito constitucional de fazê-lo. Eu tenho, porém, um direito constitucional de me expressar. Está inscrito na lei.
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Lee Siegel é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo