Tendo acompanhado na íntegra o debate dos candidatos à prefeitura de São Paulo ocorrido na noite de ontem [14/10], na manhã de hoje esperava consultar os jornais com o intuito de esclarecer os pontos obscuros presentes nas falas de ambos. Como tem sido recorrente minha decepção com a cobertura da política municipal, decidi escrever esta mensagem.
Encontro na edição da Folha de S.Paulo pouco mais do que paráfrases que nada contribuem para quem tenha visto o diálogo entre os candidatos à prefeitura. Não há formulações críticas a respeito do que dizem os candidatos. Não há levantamento de fatos que procurem estabelecer a viabilidade das afirmações e acusações recíprocas. O jornal limita-se a fazer uma exposição que é totalmente supérflua para aquele que ouviu o que disseram Marta e Serra.
Exemplifico: são problemas do mesmo âmbito a contratação de um marqueteiro e a escolha de um vice-prefeito? Deve ser equiparada a importância de cada uma deles para a cidade de São Paulo? Gilberto Kassab será o vice-prefeito, caso Serra seja o prefeito. E Duda Mendonça terá de passar por uma licitação, caso queira ser o publicitário responsável pela publicidade do município. Isso é óbvio. Mas o jornal limita-se a reproduzir o emparelhamento das duas afirmações, sem analisá-las.
Marta afirma que os derivados de sangue tiveram seu preço reduzido a 25% no governo Lula e que isso é prova de corrupção na pasta do ex-ministro Serra. Houve corrupção? Como andam as investigações? Serra tinha responsabilidade no caso? Os cidadãos não podem recorrer a outra fonte senão o jornal para saber se se trata de uma acusação leviana ou se de fato há indícios de corrupção sob a tutela do atual candidato do PSDB.
Serra, em contrapartida à acusação de Marta, diz que os ‘vampirões’, isto é, funcionários do governo acusados de organizar a ‘máfia do sangue’, são partidários do PT. Quem são? Há nomes a serem citados? A imprensa tem conhecimento desses nomes? Se não é uma informação pública, não deveria o ex-ministro prestar depoimento policial por ter essas informações privilegiadas?
Apuração das acusações
Serra acusa Marta ou de corrupção ou de má gestão da verba pública, quando fala do aumento de 70 milhões de reais nas despesas dos túneis da Faria Lima. Marta admite que houve imprevistos e procura justificá-los tecnicamente, citando as formações rochosas e o excesso de tubulações sob o solo que não estavam mapeadas nas plantas urbanas. Seria o caso de o jornal consultar as entidades de classe? As de engenharia, suponho. Nessa consulta, deveria procurar saber se esse tipo de surpresa é justificável ou se realmente é incompetência da empreiteira ou da prefeitura. Sendo incompetência da empreiteira, que não soube orçar corretamente a obra, deve a prefeitura arcar com gasto extra? Isto está previsto em contrato? Do mesmo modo que o cidadão pode saber do gasto de 70 milhões, deve saber também se foram ou não bem gastos. Caso contrário, a informação torna-se vazia e desprovida de sentido. Da mesma forma que as palavras transparência e austeridade estão se tornando vazias numa campanha em que o jornalismo não atua criticamente sobre as declarações dos candidatos.
Serra reclama que Marta fala muito de Alckmin e Fernando Henrique Cardoso. Quais são os pontos de vista em questão? É relevante saber como os aliados de Serra se comportam? Dizer que Alckmin é padrinho justifica algo? Qual a relevância do grupo partidário na administração pública? Um ponto de vista é supor que é necessário discutir o passado público do candidato, saber com quem já trabalhou e como é o modo de trabalho daqueles que fazem parte de seu partido, que supostamente pensam a política de forma semelhante ao possível prefeito. Outro ponto de vista é o que observa a cidade e procura os defeitos da atual gestão. São visões realmente incompatíveis? Cabe ao candidato recusar-se a falar de seu aliado? Cabe à candidata desqualificar o passado público do político que pleiteia cargo administrativo sem nunca tê-lo ocupado?
O candidato Serra fala de ‘apagão da saúde’. Do que se trata esse nome na prática? É comparável ao da energia? Diz ele também que a atual prefeita não criou um leito a mais na cidade em toda a sua gestão. É possível confirmar a veracidade dessa informação? Não houve acréscimo de um único leito? O jornalismo cumprirá bem sua função se mostrar algo a respeito disso e questionar a respeito do fato. Caso não seja um fato real, o agressor deve ser contatado e questionado a respeito da leviandade do que afirma.
Sentidos profundos
Sobre o desemprego, ambos trocam acusações no âmbito do governo federal. Para Serra, Lula aumentou o desemprego. Para Marta, FHC é o ‘pai do desemprego’. É possível, ou viável, fazer um cálculo sobre as estatísticas nacionais e compreender se faz sentido alguma das afirmações? Talvez ambas? Como é possível tratar cientificamente os números do desemprego? É possível isolar esses números e atribuir a um governo nacional sem levar em conta a realidade global? Quanto aumentou o desemprego nos países latino-americanos nos últimos dois anos? E no Brasil? E na Europa? E nos últimos 10 anos, como foi a situação do Brasil em relação ao resto do mundo? O desemprego aumentou somente aqui?
Democracia não é sinônimo de debate, ela pressupõe o debate, que não dura só as horas em que é transmitido pela televisão. Todas as falas ali realizadas devem ser avaliadas até as últimas conseqüências. Dizer que o debate contribui e constrói a democracia é uma afirmação precipitada. Num debate em que se proclamam a altos brados a própria capacidade e a incompetência alheia, sem haver questionamento da veracidade das acusações, sem um levantamento pormenorizado das informações trazidas ao público e sem a cobrança posterior em caso de leviandade, o que existe é apenas superficialidade.
O regime democrático torna-se submisso ao poder de persuasão das equipes de publicidade de ambos os lados. Cabe ao jornalismo, pois só ele tem esse poder, a função de apresentar aos interessados os sentidos profundos da fala de cada candidato. E somente a cobrança acirrada sobre cada acusação leviana fará com que os próximos debates façam sentido, porque, de outro modo, sempre valerá falar qualquer coisa em nome da impressão causada no momento.
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São Paulo