Era uma vez um cego que pedia esmolas em uma esquina da cidade. Dele se acercou um amigo, que disse estar com uma vontade imensa de comer uvas. Então resolveram comprar, ‘de meia’, uma caixa de uvas, e o combinado foi que cada um comeria uma uva de cada vez, já que cada um tinha entrado com a metade do dinheiro. Sentaram-se à sombra de uma árvore frondosa e começaram a degustar as uvas. Depois de algum tempo, o cego reclamou, irritado: ‘Você não está cumprindo o acordo! Está comendo muito mais de que uma uva de cada vez!’ O amigo, surpreso, falou: ‘Como é que você me acusa? Você é cego, não pode ver o que estou fazendo!’ E o cego, chutando o pau da barraca: ‘É que estou comendo quatro de cada vez, e você não está reclamando…’
No reino encantado das pesquisas de intenção de voto, junto com os trabalhos bem-feitos (geralmente para ‘uso interno’), convivem pérolas da fajutice nas quais, às vezes, até os bichos, as flores e as pedras peroram, obtemperam e redargúem – como seria de se esperar. O mundo político é um dos setores mais sujos e corruptos da vida nacional, como provam todos os dias as páginas dos jornais. O mundo é cheio de maldade e de ilusão, e maya vive de interromper a alvorada à saída da caverna de Platão (hoje estou filosofando).
Os institutos, na maioria das vezes, fazem um bom trabalho e apuram os números direitinho, mas, neste cenário de real valor, a mídia contribui com seu grau de espetáculo, com as palavras estentóreas e as imagens retumbantes do carnaval de sempre, ‘forçando a barra’ nesta ou naquela direção. Não é nenhuma novidade, há alguns anos escrevo neste Observatório quase que exclusivamente sobre isto.
A novidade é que, neste ano, as pesquisas eleitorais deverão ter um ‘responsável técnico’, um estatístico – alguém que tenha se graduado em um dos cursos superiores de Estatística do país. Foi o que solicitou o CONFE (Conselho Federal de Estatística) e é o que manda a Resolução nº 21.631, de 19/2/2004, incorporada à Resolução Nº 21.576, de 2/12/2003:
‘O número do registro da empresa que efetuou a pesquisa, caso o tenha, o nome do estatístico por ela responsável e o número de seu registro no competente Conselho Regional de Estatística devem ser informados no pedido de registro da pesquisa perante a Justiça Eleitoral, não sendo necessário que essa indicação seja feita a cada nova pesquisa.’
Muito bem, exclamamos. Para advogar, advogados, e médicos para medicar. Para ensinar, professores, e engenheiros para engenheirar, e comunicadores e jornalistas para comunicar. Logo, para conhecer os humores volúveis do eleitorado, estatísticos – ou não?
Sinceramente, acho que não. Estatística não é ciência, é técnica, é matemática aplicada no conhecimento da realidade, seja esta ‘realidade’ o nível de satisfação de consumidores de uma marca de cerveja ou as taxas de mortalidade infantil. [‘Na década de 70 e 80, foram criados a maioria dos Departamentos Estatística (sic) das universidades brasileiras, através do desmembramento dos Departamentos de Matemática, e também os respectivos cursos de graduação.’ Vide http://www.mec.gov.br/sesu/ftp/curdiretriz/estatistica/esdire.rtf]
‘Conhecimento essenciais’
Estatística não é mágica, é a melhor ferramenta que existe para se obter informações e organizar o conhecimento, seja sobre o mercado imobiliário, seja do movimento das partículas sub-atômicas. A Estatística é utilizada, bem ou mal, por economistas, administradores, médicos, veterinários, engenheiros, psicólogos, geógrafos, comunicadores, profissionais de marketing, sociólogos, pesquisadores acadêmicos de todas as áreas; ninguém com um mínimo de bom senso toma qualquer decisão, hoje em dia, sem o apoio da estatística. E a palavra é esta: apoio técnico. E não esta divinização que se quer, dando uma espécie de poder aos graduados em Estatística, de apor seu ‘certificado de qualidade’ às pesquisas. É até um tanto perigoso: pode um jornalão desses distorcer os números a seu bel-prazer, carregando o nome do estatístico responsável para a sarjeta.
Voltando à Resolução nº 21.576, que cria uma espécie de ‘reserva de mercado’ para os estatísticos. Ainda em 1999, um documento do MEC, ‘Diretrizes Curriculares para Cursos de Estatística’, reclamava, justamente, da maneira como que se ensinava estatística, com ‘currículos longos, centrados na idéia de que o aluno aprende apenas na sala de aula, através de aulas expositivas e dentro dos muros, quase que exclusivamente, de um único departamento.’ E da ‘enorme evasão escolar que chega a 90% dos alunos de uma dada coorte’. E lamentava que haver ‘um grande descompasso entre o que é ensinado e o que é demandado. Diante disto, a grande demanda por conhecimento estatístico na indústria, nos órgãos de governo, nas empresas de assessoria é hoje atendida por pessoas com pouca ou nenhuma formação estatística, com claros prejuízos para a sociedade, que se vê privada de melhor informação para a tomada de decisão’ (grifos nossos).
Continua o documento:
‘Esta situação tem de ser mudada. O mercado de trabalho pede outras competências e premia os que as desenvolvem. Todos são unânimes em dizer que habilidades como capacidade de expressão oral e escrita, domínio de língua estrangeira e de formulação de problemas, são fundamentais para o exercício de qualquer profissão hoje. É claro que, além disso, cada profissão tem o seu corpo de conhecimentos essenciais que são o eixo norteador da formação do aluno em torno dos quais as competências acima ganham explicitação.’
Mito reproduzido
Ótimo, quanto mais preparo e conhecimento, melhor. Mas será que o país conta com tantos estatísticos assim, que possam planejar e acompanhar in loco a realização das pesquisas eleitorais? E depois, efetuar (ou conferir) os cálculos e analisar os resultados? [Pesquisei na internet, e as universidades que tem cursos de graduação em Estatística são os seguintes: UnB (Brasília), UFMG (Belo Horizonte), UFBA (Bahia), UFPE (Recife), UFPR (Curitiba), UFRJ (Rio de Janeiro), UFRN (Natal), UFRGS (Porto Alegre), USP (São Paulo). Peço que alguém complemente esta lista, se estiver incompleta.]
Outra coisa: a quase totalidade das pessoas que conheço, responsáveis pela elaboração de pesquisas, conhecem estatística suficiente para realizar seu trabalho, e o fazem muito bem, mesmo não sendo estatísticos – assim como não são estatísticos a quase totalidade dos professores de Estatística do país. Mesmo mestres e doutores em Estatística, não sendo graduados em Estatística, ao que me consta, não poderão assinar como responsáveis técnicos das pesquisas. Não parece um contra-senso?
Imagino que deve acontecer a aplicação sempre renovada do jeitinho brasileiro. Estatísticos irão ‘assinar’ pesquisas feitas pelos institutos e empresas nas quais confiam que não farão nada que os comprometa. É absolutamente impossível fiscalizar se aquilo que foi declarado aos tribunais eleitorais, quando do registro da pesquisa, foi realmente cumprido como está no papel. A lei regulamenta, permite e proíbe isso e aquilo, mas não impede o crime, a má-fé ou a impura e simples picaretagem. Daí que ficamos no mesmo estágio.
Em todo lugar do mundo acontecem deturpações na análise de informações, algumas trágicas, outras risíveis. O mito da opinião pública, ou melhor, as falácias que emolduram este mito são uma constante, alimentadas pela mídia o tempo todo. No caso das pesquisas eleitorais, como já foi dito e redito neste espaço muitas vezes, há que ter paciência de se incentivar que os partidos e os candidatos se fiscalizem e se vigiem, como cego e as uvas. E torcer para que a Justiça Eleitoral cumpra o seu papel.
Democracia é exercício.
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Engenheiro, professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora