Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

As polarizações não dão conta das mudanças de imaginário

Os discursos de que o Brasil está dividido pós-eleições presidenciais, por conta da diferença de 3% entre a presidente reeleita e o candidato de oposição, “não explica a eleição de 2014”, avalia Ivana Bentes em entrevista à IHU On-Line. “Não podemos falar de um Brasil partido em dois pós-eleições, mas de uma constelação de interesses e desejos que expressam grupos e segmentos múltiplos”, enfatiza. Segundo ela, “a partição binária não serve a ninguém. É mais um ‘meme’ e uma narrativa redutora, polarizadora e conservadora. O mapa das eleições é muito mais mesclado e instável que o ‘muro’ que querem erigir entre nordestinos e sulistas, ou a polarização entre dois partidos, PT e PSDB”. Apesar de a leitura de um país dividido ser equivocada na opinião da pesquisadora, ela frisa que a polarização e a “narrativa do embate não desapareceu”, tampouco “os conflitos de classe”. Embora a divisão apareça em alguns pontos, “essa dualidade não dá conta, em termos simbólicos, das mudanças que o país sofreu e da mobilidade subjetiva dos muitos”, enfatiza.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Ivana Bentes responde algumas das perguntas da IHU On-Line, com ênfase em uma análise do discurso tanto da mídia, que ela denomina de “Mídia-Estado”, quanto das redes sociais. “Durante algum tempo acreditamos que as redes sociais enterrariam revistas como a Veja, pois com uma mídia-multidão as denúncias seriais e campanhas podem ser desconstruídas com a velocidade e sagacidade dos muitos. Mas as redes também podem produzir e reproduzir o mesmo discurso de ódio, racismo, intolerância”, pontua.

Para ela, “é fato que o estilo Veja e o ‘ódiojornalismo’ acabaram contaminando parte das redes sociais (por galvanizar sentimentos e crenças enraizados em um ambiente profundamente desigual e conservador)”. Contudo, pontua a professora de Jornalismo, as redes, diferente de veículos como a Veja, “antecipam as crises e tratam dela com humor e escracho, podendo neutralizá-la ou diminuir seu estrago”.

Ivana explica o apoio dos movimentos sociais à reeleição de Dilma ao “reconhecimento (mesmo que tardio) dos temas das Jornadas de Junho de 2013, à crise da representação, à democratização da mídia, à centralidade da cultura na virada de imaginário e na mudança da cultura política”. A presença do ex-presidente Lula nas eleições, “de forma pragmática e simbólica”, também contribuiu para a reeleição da presidente Dilma e “recolocou o lulismo na linha de frente desta guinada à esquerda da campanha de Dilma”.

Pós-eleições, com a reeleição de Dilma, Ivana frisa que “é preciso fazer o embate com uma direita anacrônica que acha que estamos à esquerda demais e para uma esquerda que acha que ainda estamos muito à direita e que está ‘tudo dominado’. É preciso uma virada de imaginário para sair desses dualismos e qualificar a palavra mágica ‘mudança’ que atravessou todos os partidos e candidatos com sentidos distintos”.

Ivana Bentes é professora e pesquisadora da linha de Tecnologias da Comunicação e Estéticas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É doutora em Comunicação pelaUFRJ, ensaísta do campo da Comunicação, Cultura e Novas Mídias. É coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ.

Confira a entrevista. 

Qual sua avaliação do resultado das eleições presidenciais deste ano?

Ivana Bentes – A primeira coisa que chama atenção na eleição presidencial de 2014, que deu a vitória apertada à presidente Dilma Rousseff, é a profunda ingerência de uma Mídia-Estado na cultura política, associada com arcaísmos e anacronismos de um pensamento conservador que atravessa os mais diferentes grupos e classes sociais. O resultado das eleições e os discursos de ódio que afloraram não se explicam simplesmente “partindo” o Brasil entre ricos e pobres ou muito menos entre regiões. É hora de entender a porosidade e penetrabilidade desses discursos duais de demonização do outro, minando um amplo campo social, e perceber novos imaginários emergentes.

Chegamos ao clímax de uma campanha eleitoral que reflete uma cultura de criminalização que produz uma ativa rejeição da política, apresentada cotidianamente em narrativas midiáticas que ficcionalizam as notícias e novelizam a política, com reiteradas associações da política e dos políticos com corrupção, ilegalidade, traições, intrigas. Uma memética negativa que afasta e despolitiza os muitos do que realmente está em jogo: interesses econômicos, especulação contra a vida, a privatização das riquezas, o moralismo e conservadorismo em que assujeitam minorias e diferenças.

A fábrica de fatos e a produção da opinião pública

Essa cultura do “ódiojornalismo” e o estilo Veja também aparecem na retórica dos articulistas e colunistas de diferentes jornais e veículos de mídia que formam hoje uma espécie de “tropa de choque” ultraconservadora (Arnaldo Jabor, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, Merval Pereira, Demétrio Magnoli, Ricardo Noblat, Rodrigo Constantini, são muitos), que alimentam uma fábrica de memes de uma ultradireita que se instalou e trabalha para minar projetos, propostas, seja de programas sociais, seja de ampliação dos processos de participação da sociedade nas políticas públicas, seja de processos de democratização da mídia e todo o imaginário dos movimentos sociais.

Essa demonização da política tornada cultura do ódio se expressa por clichês e por uma retórica de anunciação de uma catástrofe iminente a cada semana nas colunas dos jornais e que retroalimentam, com medo, insegurança, ressentimento, uma subjetividade francamente conservadora de leitores e telespectadores.

Se lermos os comentários das notícias e colunas nos jornais (repercutidos também nas redes sociais), vamos nos deparar com um altíssimo grau de discursos demonizantes, raivosos e de intolerância, à direita e agora também à esquerda. Trata-se de uma redução do pensamento aos clichês, memes e fascismo, extremamente empobrecedora, mas incrivelmente eficaz.

Essa pedagogia para os microfascismos e a educação para a intolerância podem ser resumidos na retórica que desqualifica e aniquila o outro como sujeito de pensamento e sujeito político, o que fica explícito na fala de alguns colunistas.

Um exemplo muito claro, inclusive no seu cinismo, é este trecho de uma coluna do Arnaldo Jabor de 28/10/2014, pós-eleições. Com uma argumentação pueril e assujeitante que coloca eleitores, nordestinos e nortistas, pobres como “absolutamente ignorantes sobre os reais problemas brasileiros”, em um cenário pós-eleições em que “nosso futuro será pautado pelos burros espertos, manipulando os pobres ignorantes. Nosso futuro está sendo determinado pelos burros da elite intelectual numa fervorosa aliança com os analfabetos”.

Numa coluna anterior, de 14/10/2014, podemos ver como funciona essa pedagogia calcada na construção de memes e clichês, a obsessão anacrônica por Cuba e agora pelo “bolivarianismo” e o caráter ameaçador que se dá a qualquer política pública contemporânea e modernizante que tenha como horizonte a participação social:

“– Qual é o projeto do PT? – Fundar uma espécie de bolivarianismo tropical e obrigar o povo a obedecer ao Estado dominado por eles. – Que é bolivarianismo? – É um tipo de governo na Venezuela que controla tudo, que controla até o papel higiênico e carimba o braço dos fregueses nos supermercados para que eles só comprem uma vez e não voltem, porque há muito pouca mercadoria.”

Trata-se de metáforas primárias, mas capazes de se difundir velozmente em um “semiocapitalismo” para usar a expressão do ativista e pensador italiano Franco Beraldi, inspirada em Félix Guattari, que tem como base signos, imagens, enunciados que giram velozmente, viralizam, comovem. Essa é a base tanto do ativismo, da publicidade social, quanto do pensamento conservador. A questão é como desconstruir esses clichês e trabalhar para que essas mudanças em curso se massifiquem a ponto de se tornarem um novo comum.

De certa forma foi o que vimos em relação aos programas sociais. Não será possível desmontá-los e desqualificá-los como se imaginava, pois o acesso aos programas tem dois vieses: a entrada da chamada classe C ao mundo do consumo, como consumidores simplesmente, mas ao mesmo tempo uma politização do cotidiano, com a percepção de si como sujeito de direitos e com uma interface com o Estado que não se reduz ao negativo, carência e insuficiência de serviços.

A próxima desconstrução massiva da mídia se dará em torno das noções de “participação popular”, “liberdade de expressão” e “controle social”, buscando construir uma valoração negativa e associá-las a um projeto autoritário de“menos democracia” e de restrição de direitos, quando se trata justamente de redistribuir poder simbólico e capital midiático pelos muitos. Uma operação que está em curso e que busca articular: políticas de regulação da mídia com “censura” de conteúdos.

Como avalia as discussões políticas via redes sociais?

I.B. – Os discursos de ódio que assolam o país (uma construção em curso desde 2002 e alimentada midiaticamente no caso do antipetismo) contaminaram também parte da militância governista e de forma difusa contaminaram as redes e as ruas em embates reais e simbólicos. Sem dúvida, trata-se do resultado de um processo em curso que passa pela judicialização da política, mas que inclui muitas outras indignações, inclusive as das Jornadas de Junho de 2013 contra os partidos e os processos verticais de governos e Estados. Um discurso represado contra a corrupção, que foi explorado à exaustão pela mídia e que desde as Jornadas de Junho surge no que tem de libertador, mas também de hipócrita e moralista, um discurso de viés conservador.

A Mídia-Estado produz e gerencia subjetividades, excitando e medindo forças com a sociedade, com as redes, com muitos conectados e desconectados e teve, nessa eleição, um caráter, eu diria que até épico, uma inflexão e temperatura que intensificou a percepção dos muitos do que podemos chamar de midiocracia, o governo das mídias.

O jornalismo padrão Veja como paradigma

Se analisarmos nessa eleição o grau de ingerência das mídias e o que chamei, na falta de uma palavra melhor, de “ódiojornalismo”, galvanizando microfascismos e comportamentos antidemocráticos, podemos entender os mecanismos de produção de crise. Foi o caso da intervenção da Veja, nessas eleições, entre outros acontecimentos que precisam de algum tempo para serem avaliados. Como pudemos acompanhar no projeto Manchetômetro, que mede o número e destaque de matérias negativas para os diferentes candidatos e o número de escândalos e seu tempo de exposição na mídia.

Nas análises da campanha presidencial de 2014, o site "Manchetômetro" chama atenção para o devir-Veja do noticiário brasileiro, com destaque para a Folha de S.Paulo, para o que chamou de “Folha padrão Veja”, em que “Dilma foi campeã de chamadas e manchetes negativas por quase todo período de campanha”.

Na ecologia das mídias que se retroalimentam, a Folha chegou a publicar um material noticiando a ausência de repercussão da capa da Veja sobre as acusações do doleiro a Lula e Dilma. “Jornal Nacional não menciona reportagem”, de 25/10/2014.

Sabemos que uma revista como a Veja é motivo de piada em todos os Cursos de Comunicação do país, não apenas pelo nível de distorção e editorialização de suas capas, mas como exemplo de um singular negócio. A moeda da Veja e de parte da mídia nunca foi o jornalismo, mas a "produção de crise" e sua capacidade de produzir instabilidade política e destruir reputações. Essa é sua única moeda: a ameaça de produção de crise e o restabelecimento da "estabilidade".

Durante algum tempo acreditamos que as redes sociais enterrariam revistas como a Veja, pois com uma mídia-multidão, as denúncias seriais e campanhas podem ser desconstruídas com a velocidade e sagacidade dos muitos. Mas as redes também podem produzir e reproduzir o mesmo discurso de ódio, racismo, intolerância.

É fato que o estilo Veja e o “ódiojornalismo” acabaram contaminando parte das redes sociais (por galvanizar sentimentos e crenças enraizados em um ambiente profundamente desigual e conservador). Vemos hoje o leitor típico de Veja multiplicado e repetindo ou produzindo esse jornalismo de ódio, numa subjetividade denuncista/fascista. Ao mesmo tempo, para além da desconstrução da retórica "fait divers" da Veja e desconstrução do denuncismo como "negócio", as redes antecipam as crises e tratam dela com humor e escracho, podendo neutralizá-las ou diminuir seu estrago.

Foi o que vimos nas capas antecipadas nas redes parodiando a capa denúncia da Veja contra Dilma e Lula, na sexta-feira dia 24 de outubro. Utilizaram o humor como anticorpos para uma denúncia bomba produzida para desestabilizar as eleições. Trata-se da expressão da inteligência coletiva, que neutraliza o truque conhecido e aguardado derretendo a suposta "bala de prata" dessas eleições antes mesmo de ela ser disparada.

A chegada nos Trending Topics – TTs da hashtag ?#‎deseperodaVeja denunciando e desconstruindo a denúncia do doleiro contra Dilma e Lula teve um efeito impactante e de amortecimento do golpe midiático. A resposta de Dilma Rousseff no seu programa eleitoral denunciando a manobra, o direito de resposta no próprio site da Veja, obtido junto ao TSE, a não repercussão da capa da Veja no Jornal Nacional da sexta-feira formaram uma onda de repúdio e descrédito em torno da operação golpista, notícia que não deixou de ser superexplorada pelos adversários de Dilma Rousseff.

Ainda no campo da análise dos discursos, é preciso dizer que todo o poder de fogo de Veja se concentra na capa, peça over editorializada e peça em que investem todo o impacto emocional, estético (anunciam previamente nas redações e contam com a cumplicidade do restante da mídia para repercuti-la mimeticamente). No episódio dessas eleições, a capa se resume a uma frase de um doleiro pinçada de um processo.

Ação e reação. O escracho contra a sede da Abril

Dentro da revista, o conteúdo da capa é pífio sempre. Tudo se resume a três linhas: “O Planalto sabia de tudo – disse Youssef. – Mas quem no Planalto? – perguntou o delegado. – Lula e Dilma – respondeu o doleiro. (….) O doleiro não apresentou – e nem lhe foram pedidas – provas do que disse”, conclui a “reportagem”, explicitando o próprio blefe. Aposta-se em uma capa editorializada e em uma frase não comprovada para tentar desestabilizar uma eleição. A maioria das pessoas também só lê as manchetes das primeiras páginas, a disputa se dá aí, pois atuam formando os memes negativos, associando pessoas, partidos e ações a crimes, ilegalidade, insegurança. A estratégia se repete a ponto de não mais surtir o efeito esperado.

Ainda na sequência do golpe malsucedido de Veja, vimos da reação com uma ação de “escracho” da União da Juventude Socialista – UJS, com pichação e lixo jogado na fachada da Editora Abril. Uma ação que poderia ter custado a eleição de Dilma, por confrontar diretamente a mídia e criar uma solidariedade com a Veja. O fato de o TSE ter dado direito de resposta à Dilma neutralizou parte do impacto negativo do golpe e contragolpe. Acho legítimas as ações de escracho, revolta e indignação que produzem danos simbólicos, um grande debate nas Jornadas de Junho de 2013 que envolveu as ações Black Blocs e que vemos que vieram para ficar na linguagem das ruas. Mas a ação do escracho na porta da Abril, legítima, foi no limite do “timing” e poderia ter selado uma reação furiosa em defesa das corporações de mídia, o que felizmente não aconteceu.

O Jornal Nacional da Globo fez a crônica da Veja, da UJS e do TSE de forma razoavelmente equilibrada no dia 25/10, véspera das eleições, para quem esperava o “apocalipse” (mais um golpe de mídia) e um alinhamento automático daGlobo com a Veja nesse episódio. Dilma manteve a vantagem na pesquisa do Ibope e ganhou as eleições por uma diferença apertada de pouco mais de três milhões de votos. Mas não antes de enfrentar um último boato nas redes: que o doleiro delator, que passou mal em meio a tantas reviravoltas, tinha sido envenenado pelo PT e agonizava em um hospital! Chegamos num nível bem alto de novelização dos fatos, um tipo de narrativa com vilões, mocinhos, vítimas e algozes que tem enorme penetração no imaginário e nas redes, que funcionam como veneno e antídoto, desconstruindo e produzindo memes e clichês.

Esse tipo de acirramento na disputa política introduz uma lógica dual e de confronto violento, pessoal, engajado e mobilizador, pois a “épica” e narrativa criada traz um componente de despolitização, que desloca a argumentação, o embate de ideias, para um confronto meramente afetivo/emocional, como nos jogos de futebol e comportamento das torcidas organizadas; o que aproxima ainda mais a política da ficção, do teleshow da realidade e da lógica melodramática das narrativas novelescas, populares no Brasil. Como politizar a comoção e os afetos? Esse me parece um desafio para o ativismo e para a formação política.

O debate em torno da democratização dos meios de comunicação chegou a um limite no Brasil. Temos a Lei de Meios na Argentina, avanços no debate no Uruguai, no México. No Brasil, a Reforma da Lei Geral de Comunicações segue obstruída mesmo sendo uma demanda e reivindicação de todos os movimentos sociais e culturais. Com a massificação das redes sociais, o midiativismo, a proliferação de pontos de mídia e de uma miríade de contradiscursos, o enxameamento da mídia-multidão começamos a experimentar uma outra deriva, mas insuficiente se não se auto-organizar e se constituir como uma outra cultura de redes, capaz de reagir e neutralizar os microfascismos cotidianos.

A reeleição apertada de Dilma demonstra um país dividido? 

I.B. – O embate agônico entre “torcidas” partidárias resultou ao final dessas eleições em um recorrente discurso da partição, do muro, do dualismo, do binarismo, de um país conflagrado. Esse discurso do Brasil “partido” pós-eleições não explica essa eleição de 2014. Vimos pessoas que migraram do ativismo e das mobilizações deJunho de 2013 ao voto em Aécio Neves (inclusive intelectuais de renome que apoiaram Marina Silva no primeiro turno e seguiram a candidata apoiando Aécio), mas particularmente os que estavam nas ruas por uma indignação difusa contra o sistema representativo e os partidos e que conectaram o sentimental de “mudança” com o marketing da mudança do candidato do PSDB. Uma associação que Marina Silva capitalizou no primeiro turno, com a mesma ambivalência.

Vimos uma população que criticou as ruas por produzirem crise votar em Dilma, por medo e receio de que as manifestações de Junho fossem um complô da direita para desestabilizar o governo. Uma leitura equivocada da radicalidade e insurgência dos desejos. Vimos a oposição (em geral fratricida) formar um campo de esquerda solidário sustentando as encostas para evitar a enxurrada conservadora que desce destruindo o construído. Destacamos aqui o apoio de lideranças do PSOL, como Marcelo Freixo, eleito com uma votação histórica de 350.408 votos e Jean Wyllys, que reivindicou um compromisso da candidata Dilma com as questões LGBT e com as minorias e populações indígenas.

Vimos uma real politização da disputada Classe C (a classe dos “batalhadores” sem partido, ou desorganizados) se posicionando claramente em defesa das suas conquistas, refletidas no dia a dia. Vimos essa mesma classe Cidentificada com os valores conservadores do racismo, preconceito, moralismo.

Vimos a expressão assustadora de uma classe média raivosa e anacrônica, repetidora dos clichês mais primários construídos pela Mídia-Estado. Um “ódio ao PT” identificado como ódio aos pobres, nordestinos, etc. Vimos a defesa da elite dos seus privilégios e uma esquerda perguntando “onde erramos”? Vimos os que se abstiveram, anularam e se retiraram taticamente do jogo, por exaustão, recusa, repúdio das regras do jogo.

Não podemos falar de um Brasil partido em dois pós-eleições, mas de uma constelação de interesses e desejos que expressam grupos e segmentos múltiplos. O trabalho, depois de um intenso embate, é potencializar e politizar, organizar e construir movimentos, coletivos, organizações, bases menos maniqueístas e dualistas. Redistribuir riquezas e não aprofundar o fosso.

A partição binária não serve a ninguém. É mais um "meme" e uma narrativa redutora, polarizadora e conservadora. O mapa das eleições é muito mais mesclado e instável que o "muro" que querem erigir entre nordestinos e sulistas, ou a polarização entre dois partidos, PT e PSDB. A narrativa do embate entre “ricos e pobres” não desapareceu, e nem os conflitos de classe, mas essa dualidade não dá conta em termos simbólicos das mudanças que o país sofreu e da mobilidade subjetiva dos muitos.

Discursos

Sobre a retórica presente nos discursos de Aécio Neves, destacamos além da captura (mesmo que marqueteira e superficial) do legítimo desejo de mudança e uma equiparação entre “mudança” e “alternância de poder”, e ainda mudança e futuro. Mas o batido chavão do candidato que olha para o “futuro” e se apresenta como seu fiador não convenceu uma parte do eleitorado que votou com base na sua percepção do presente e sem fantasiar ou imaginar futuros alternativos radicais em relação aos programas e experiências bem-sucedidas.

Qual o lastro de "mudança" e "futuro" nas propostas e projetos apresentados por Dilma? Esses 12 anos fizeram história e tem um presente urgente e um horizonte, um projeto em disputa. O futuro, na campanha de Dilma, surge como um presente estendido e turbinado, melhorado. Enquanto os eleitores de Aécio Neves votaram em programas que desaprovam e combatem ativamente (Bolsa Família, Prouni, cotas), a partir de argumentos insustentáveis (bolsa-esmola, meritocracia, etc.) e que Aécio Neves afirmava que iria "continuar" para agradar aos demais eleitores, sem nenhuma outra proposta alternativa aos programas. Com o agravante de o PSDB ter tentado desqualificar todos os projetos sociais do governo. Estranha equação!

Que avaliação faz dos movimentos sociais nessas eleições, inclusive daqueles que criticaram o governo e acabaram por apoiar a reeleição de Dilma?

I.B. – O que vejo de mais positivo nesta eleição foi o retorno dos movimentos sociais e culturais na disputa do projeto do governo, com uma multidão que, mesmo insatisfeita, foi para as ruas. A pressão para uma guinada à esquerda e a retomada de políticas interrompidas resultou na entrada de Juca Ferreira na coordenação do Programa de Cultura de Dilma. Em torno dele formou-se uma rede que colocou a presidente em diálogo (em atos, comícios, cartas, declarações e posicionamentos) com a pauta trazida por jovens das periferias, do hip hop, do funk, do passinho, com projetos sociais e culturais vindos das favelas; que recolocou na cena o debate em torno dos Pontos de Cultura, da banda larga, da cultura digital, da criminalização da homofobia, da Reforma Política.

O reconhecimento (mesmo que tardio) dos temas das Jornadas de Junho de 2013, a crise da representação, a democratização da mídia, a centralidade da cultura na virada de imaginário e na mudança da cultura política, me parecem que efetivamente impactaram de forma decisiva para o engajamento e a ida de militantes, ativistas, participantes de uma frente de esquerda (PT, PSOL, PCdoB, etc.) que chegaram não apenas com um “voto crítico”, mas com apoio e capital simbólico e de credibilidade (MTST, MST, Reitores de Universidades públicas, professores, cineastas, Pontos de Culturas, médicos, cotistas, etc. que se expressaram em centenas de manifestos).

De forma pragmática e simbólica, a presença do ex-presidente Lula nessas eleições, subindo em palanques e atos, recolocou o lulismo na linha de frente dessa guinada à esquerda da campanha de Dilma. Lula, mais do que ninguém sabe que só nos resta a virada de imaginário e reconhecer que sem uma reaproximação com as ruas, sem as bases e o diálogo com os movimentos sociais e culturais, não tem PT e não tem mística que segure os retrocessos com um Congresso tão conservador que reelegeu Bolsonaro e Feliciano e uma eleição que deu ao PMDB o governo de sete estados, contra cinco do PT e cinco do PMDB.

Lula apontou nas suas falas o que vimos a presidente reeleita expressar no seu discurso: “Dilma precisa sair do isolamento nos próximos quatro anos e se reaproximar dos políticos, dos empresários e dos movimentos sociais". Cabe ainda destacar a carta divulgada pela presidenta Dilma aos indígenas na sua campanha: "Carta aos Povos Indígenas do Brasil", em resposta à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, se comprometendo com pautas e questões trazidas por lideranças indígenas. Trata-se de um dos pontos mais críticos do seu governo e que envolvem embates com as forças mais retrógradas deste país: "Hoje, todos sabemos, existem desafios na esfera jurídica para podermos avançar na demarcação das terras indígenas no país, principalmente nas regiões Centro-Oeste, Sul e Nordeste. Temos que enfrentar e superar estes desafios, respeitando a nossa Constituição". 

Os canais ficaram obstruídos nos últimos anos, os estragos e erros foram grandes em alguns campos, como o da questão indígena e o debate ambiental. É um enorme desafio dos movimentos e do governo, que depende de articulação e pressão.

A questão da Cultura é decisiva porque no “semiocapitalismo”, o capitalismo cognitivo, capitalismo que tem como valor a informação, a comunicação, os afetos, o modo da produção cultural (a precariedade, a informalidade, a autonomia) são as próprias formas do trabalho contemporâneo, as formas gerais do trabalho. Nesse sentido, a cultura hoje é um processo transversal que impacta nas formas de produção de valor em todos os demais campos.

Podemos, partindo da cultura e do MinC, por exemplo, repensar questões decisivas como a valorização, apoio, sustentabilidade dos Pontos de Cultura, Pontos de Cultura Indígenas, ações de formação dos movimentos urbanos, novas redes de produção audiovisual, de mídia, dos povos tradicionais, cultura digital, etc. É um erro o governo não olhar para esse campo como estratégico, como lugar de desenvolvimento, produção de valor e radicalização da democracia. Cultura não é mais um “setor”, é um processo transversal e decisivo.

Recentemente a senhora postou um texto que iniciava com a seguinte declaração: “Eu voto porque somos ingovernáveis”. O que subentende nessa afirmação?

I.B. – Não vejo contradição nem oposição aos processos que levam das ruas às urnas e vice-versa, são complementares. Por isso temos que votar e lutar. Somos ingovernáveis, no sentido de que o processo representativo, as eleições, não podem ser o objetivo e nem o ápice do processo participativo. As redes são velozes e instituíram uma outra temporalidade e polifonia na política. Precisamos saber navegar e tomar decisões com base na ruidocracia. Os muitos tornaram-se visíveis e querem participar da vida política.

Essa participação pode ser pelas urnas, mas pode ser pelas ruas e redes também, de forma autonomista, por que não? Caminhamos nas redes e movimentos para a organização autogestionada, a organização de ação direta. Nesse sentido, a experiência de intensa participação nas redes sociais massifica, dissemina, difunde, prepara para a democracia direta, plebiscitária, em tempo real, que amplia o poder de decisão e intervenção dos muitos. Trata-se de uma mudança intensiva, de intensidade na participação, que a meu ver não tem volta.

O pânico da participação, de um Congresso e Parlamento em grande parte anacrônico e conservador, é sintoma da crise dos intermediários que assolou diferentes campos. Crise da intermediação, quando milhares de pessoas passam a exercitar a governança nas redes, da mesma forma que buscam processos desintermediados na produção cultural (crise das gravadoras, editoras, disputa nas redes com as mídias corporativas fordistas) e ascensão de uma cultura de redes que tem como horizonte a autonomia e a liberdade (“faça você mesmo”), a conectividade e o coletivo como valor.

Fica claro nessas eleições a crise da passagem entre modelos distintos. A cultura política baseada na democracia representativa (que não se esgotou totalmente, mas emerge na sua insuficiência) e a cultura de redes. O sintoma do anacronismo na política passa pela tentativa de criar estados de exceção, como o insistente golpismo da direita, pedindo "impeachment" de Dilma, antes mesmo de a eleição acabar e um estado permanente de crise, “amanhã será pior!” A antecipação continuada de crises produz medo e incertezas, constrange e despotencializa.

Temos exemplos concretos de práticas midiáticas de antecipação e produção de crise e instabilidade como controle. Lembro dos seres sensitivos que antecipam crimes no filme Minority Report. No Brasil foram desbancados pelos seres que antecipam golpes. Antes mesmo da reeleição da presidente Dilma, Merval Pereira, na sua coluna de O Globo de 24/10/2014, já pedia o seu "impeachment" por possíveis crimes futuros! Merval trabalha e cava para achar as "condições para incluir a atual e o ex-presidente em um processo criminal". E ameaça, "nesse caso, o impeachment da presidente será inevitável". Como disse sobre a Veja e serve para O Globo, a moeda da mídia é a ameaça, a chantagem, a produção de instabilidade e a produção de crise. Jornalismo é apenas o nome do genérico que embala o real negócio.

Mas as bordas conectadas balançam as redes e desestabilizam os velhos centros de poder. Os pré-cogs, os sensitivos da democracia, também visualizam futuros alternativos e algumas tags inspiradoras que neutralizam os videntes golpistas: Lei de meios, Lei Geral de Comunicações, Direito de Resposta, Regulação da Mídia, Pontos de Mídia Livre, Cultura de Redes e a Democratização das verbas publicitárias do próprio governo, dinheiro público investido nas grandes corporações de mídia e que poderia fortalecer a nova ecologia midiática das redes.

Estamos falando de um Estado-Rede, aberto aos movimentos e às críticas; é hora de se pensar em grandes frentes parlamentares de defesa de pautas e projetos, independente de partidos ou de eleição, o que importa é organizar e fortalecer os movimentos e conseguir vitórias públicas para os muitos. Os que foram às ruas para eleger a presidenta Dilma podem voltar às ruas para exigir essa virada de imaginário e participação.

Vimos nesse processo eleitoral a explosão dos discursos de ódio e entre eles o racismo, que, como mostra Foucault, é a condição sob a qual podemos exercer o direito de matar, de humilhar, de assujeitar, expondo ao risco determinados tipos de sujeitos e comportamentos, impondo a morte política, a expulsão dos territórios, a rejeição. Estamos vendo o crescimento desses discursos de ódio, com pedidos até de “intervenção militar” dos que perderam as eleições, numa tentativa de enfraquecer a democracia. O que é paradoxal e inédito pós-ditadura militar. Esses discursos de ódio, de racismo, não são, portanto, uma regressão e nem a sobrevivência de um passado arcaico, mas o produto de uma Mídia-Estado e de processos contemporâneos de biopoder e de gestão da vida.

Como avalia o discurso de uma nova política nas campanhas políticas? 

I.B. – O debate e o discurso em torno de uma “nova cultura política” me parece decisivo, e Marina Silva soube capitalizar esse sentimento no primeiro turno, mas não o sustentou nem na teoria e nem na prática. Por isso sua explosão nas urnas nos remete a um tipo especial de "viral" que é o termômetro das comoções e afetos. Digo viral e mesmo um "meme" eleitoral pensando que as eleições têm um componente simbólico e de "narrativa" que ultrapassa em muito qualquer racionalidade ou matemática eleitoral. Marina tinha a melhor narrativa, da seringueira da floresta alfabetizada aos 17 anos que por um golpe do destino teve a candidatura à presidência jogada no seu colo. Mas não sustentou a candidatura e nem o debate para além da comoção memética, pois revelou ter os piores defeitos e incoerências de Dilma Rousseff em relação aos temas comportamentais como o aborto, as drogas, o casamento gay. Como poderia ser uma alternativa aos sem voto ou aos que foram para as ruas em junho de 2013 com esse perfil conservador no campo do comportamento?

A questão ambientalista que Marina trouxe também é decisiva e desejável para uma mudança de mentalidade política. Mas o seu projeto ambientalista não se definiu nem como antidesenvolvimentista. Suas pautas acabaram soando como simples remediação dentro de um "capitalismo verde", sem força e/ou desejo de nomear e fazer o embate com o agronegócio, por exemplo.

Obviamente que o governo Dilma foi pífio em relação às questões ambientais e indígenas. Mas a questão se estende aos demais partidos e projetos: Que tipo de governabilidade um partido como o PSB e mesmo o PSDB teria que negociar, já que a eleição presidencial não muda a configuração over conservadora do Congresso?

Marina acabou se revelando a expressão de uma elite empresarial e de certo "capitalismo verde", da "responsabilidade social", o equivalente aos ecobags, o consumidor verde que acha que já faz muito por não usar saco plástico descartável no supermercado ou por comprar a cenoura orgânica do Marcos Palmeira (também acho ótimo, mas insuficiente e paliativo), sem encarar a questão dos transgênicos, por exemplo, e do agronegócio.

Potências e limites do atual governo Dilma

O desenvolvimentismo fordista de Dilma e a sustentabilidade “flex” da economia verde dos aliados de Marina são igualmente insuficientes e insustentáveis. Um é a remediação e complemento paliativo do outro. A palavra "sustentabilidade" aponta para mudanças de modelo mais radicais e profundas que não apareceram em nenhum dos programas.

Ao mesmo tempo, a presidenta Dilma, mesmo atuando dentro da “velha política”, tem um legado e capital simbólico de mudança e ruptura agindo, um projeto inacabado e em curso. O que Lula/Dilma fizeram (contra toda uma elite midiática e conservadora, contra uma parte da classe média preconceituosa e voltada para seu umbigo) com o Bolsa Família, a expansão das universidades públicas, as cotas, teria de ser feito para neutralizar os ruralistas, para mudar o sistema de segurança e de mídia. Ou seja, intervir e mudar as velhas forças conservadoras, o que vem ao encontro do desejo de governança e participação.

O PT e o governo não souberam polinizar e espraiar o que de radicalmente novo trouxeram com essa participação e rede de movimentos em torno do projeto popular. Temos que entender que “nova política” não é uma palavra mágica, é lutar contra as forças mais pernósticas deste país: ruralistas, mídia corporativa e agentes da (in)segurança pública. O Estado brasileiro não vai desbaratar essas forças sozinho e nem "de dentro". Ou bem essas forças arcaicas de especulação contra a vida se tornam intoleráveis socialmente, ou não tem governo, partido ou candidato que as vença. Mas sem dúvida temos mais chances de fazer essa mudança a partir do campo da esquerda do que reafirmando os valores retrógrados de uma elite conservadora.

“nova política” passa por essa indignação que marcou as Jornadas de Junho de 2013, passa pela crise da democracia representativa, mas não prescinde dela, passa pela demanda de participação e cogestão do Estado, mas também o fortalecimento de processos autonomistas, de autonomia e liberdade, de fabulação de mundos e de virada de imaginário.

O que entendo como “nova política” no Brasil não é só olhar para frente, mas instaurar processos de reparação, o que inclui também o que o governo Lula/Dilma teve coragem de fazer: aumentar o salário mínimo no Brasil (que a direita dizia que ia quebrar o país), fazer a PEC das empregadas domésticas, afrontando a Casa Grande na sua mentalidade escravocrata, dando existência política aos remanescentes dos quilombos, com o reconhecimento das terras quilombolas, aprovando a Lei Cultura Viva para os Pontos de Cultura e o Marco Civil para a Internet, entre tantas viradas políticas decisivas. Mas claro que isso não basta e é preciso construir futuros alternativos aos que temos hoje, diante da crise ambiental, indígena, crise de paradigmas e modelos.

A polêmica da participação social

A polêmica (induzida pela mídia e pelos derrotados nas eleições presidenciais) criada em torno do decreto da Participação Social proposto pelo governo indica como os conservadores criam memes e clichês de neutralização dos avanços, colocando as mudanças necessárias dentro da configuração fantasiosa de um “bolivarianismo tropical” ou “golpe comunista”.

Tornar lei "participação" é o embrião para um Estado-rede aberto à cogestão da sociedade. Não podemos esquecer que no auge das manifestações e da crise de 2013, a presidente Dilma acenou com uma Constituinte para fazer a Reforma Política, e a mídia corporativa veio em peso acusar o governo de “venezuelização”, golpe, mudança das regras do jogo, e o governo recuou. Agora que reelegemos Dilma, os movimentos sociais têm que cobrar não só a Reforma Política, mas um real diálogo com os movimentos sociais. Os parlamentares que votaram contra o Decreto da participação são anacrônicos, entendem participação como “reserva de mercado” para os poucos representantes no Congresso.

É preciso ampliar a participação, mas enquanto a direita diz que estamos entrando na era do "bolivarianismo tropical" com Dilma reeleita, certa esquerda coloca todo e qualquer retrocesso na conta do governo, de forma igualmente redutora. A direita acreditando que representação é um "cheque em branco" que você assina nas eleições e lava as mãos. Certa esquerda fazendo o discurso da sacralização das ruas, como se, sozinhas, as ruas e movimentos pudessem derrotar as forças obscurantistas mais arraigadas que especulam contra a vida. A real é que não se trata de escolher entre as ruas ou as urnas, mas ruas e urnas e mais centenas de ações, práticas e movimentos autonomistas e autogestionados contra o retrocesso. São muitas as formas de participação. O Plano Nacional de Participação Social apenas consolida o que já estava previsto em parte na própria Constituição, como os conselhos populares.

É preciso fazer o embate com uma direita anacrônica que acha que estamos à esquerda demais e para uma esquerda que acha que ainda estamos muito à direita e que está "tudo dominado". É preciso uma virada de imaginário para sair desses dualismos e qualificar a palavra mágica “mudança” que atravessou todos os partidos e candidatos com sentidos distintos.

O imaginário em torno da palavra mudança

Temos que nos apropriar e ressignificar o imaginário e desejo em torno das mudanças que tanto Marina Silva e depois Aécio Neves tentaram capturar, criando uma “nuvem” fluida e frouxa em torno dessa tag ou conectando mudança com um projeto político que é a vanguarda do atraso.

O que precisamos reafirmar é que as brechas e contradições existem dentro do próprio governo Dilma e devemos explorá-las. Não vejo como Dilma pode "continuar" sem mudar. Pois também ela se valeu do discurso da mudança.

O PT ainda é a mais completa tradução da bipolaridade esquizofrênica na política brasileira e que por isso mesmo está aberto às pressões, de todos os lados.

Quando Vladimir Safatle definiu Marina como uma "Margareth Thatcher da Floresta", achei exagero, mas é esse personagem político que Marina assumiu. A nova política de Marina acabou com seu apoio a Aécio Neves, ao meu ver, dilapidou parte do seu capital simbólico rápido demais. Mas as questões trazidas por sua candidatura não podem ser abandonadas, são reais e importantes.

Ao apoiar Aécio Neves, candidato derrotado nessas eleições, Marina cruzou uma fronteira delicada. Desagradou e de certa forma “traiu” parte dos que foram para as ruas em 2013 pedindo mudanças. Aécio Neves tentou capitalizar o sentimento e desejo de mudanças da forma mais conservadora, com um sentimento raivoso antipetista, pouco generoso, binário e redutor em relação ao passado. Nesse sentido, o “Muda Mais” de Dilma também ainda é apenas uma carta de intenções, mas se explicitou no discurso de vitória e logo depois, ao propor a Reforma Política, a criminalização da homofobia e a regulação da Mídia.

PT e PSDB

PT e PSDB têm projetos distintos, mas são dois projetos que incorrem em um erro comum e de boa parte da direita e da esquerda atual, a crença em um progresso infinito, aceleracionista e de esgotamento dos recursos naturais em nome do “desenvolvimento”, produzindo crises estruturantes: consumismo, crise ambiental, destruição de culturas e modos de existência que resistem a esses processos de assujeitamento da vida.

Ou seja, o desenvolvimentismo selvagem não é um problema da Dilma, é o "estado da arte" de parte da sociedade brasileira e global: consumismo desenfreado, especulação contra a vida, margem de lucros exorbitantes que passa por cima de culturas e direitos. Só uma forte pressão dos movimentos sociais quebra esse modelo. Só uma mudança de mentalidade vai expurgar essas forças de morte e desmandos arcaicos do país.

As questões continuam e não têm respostas fáceis. Temos que lutar para que o atual sistema partidário, inclusive o governo Dilma, incorpore as pautas e questões urgentes que emergiram nas ruas. Temos que sair do infantilismo político e purista que é o compromisso atávico com o inviável, pois a governança e a democracia direta vão brotar da remediação e ruptura com o atual sistema partidário.

Acho de um equívoco sem tamanho o discurso antipetista que quer a todo custo "o PT fora do poder", mas também os que defendem a todo custo o governo. Os governistas são um atraso para discutirmos, criticarmos e pressionarmos governos "de dentro" deles. Criticar e exigir mudanças não como inimigos, mas como aliados.

Votei em Dilma Rousseff porque acredito na possibilidade de tensionar seu governo por fora e por dentro. Quem precisa de políticas públicas não pôde se dar o luxo de arriscar mais retrocessos. Quem precisa de políticas públicas nos transportes, na saúde, banda larga, políticas para a juventude e para as minorias, votou na continuidade de um projeto que em 12 anos teve resultados concretos, como tirar o Brasil do mapa da fome – é muito e é muito pouco!

A “classe C” quer mais direitos e mais políticas públicas que potencializam a vida, potencializem a sua cultura e jeito de estar no mundo, não apenas ser consumidora, por isso a classe dos “batalhadores” (linda expressão que foi decisiva nessa eleição). A Marina falou para uma classe média e para uma elite liberal com pautas que Dilma subestimou. Aécio Neves despertou os microfascismos de toda sorte, numa reorganização do campo conservador no Brasil: ódio aos nordestinos, ódio e desqualificação da política, ódio aos petistas, ódio ao processo eleitoral. O legítimo desejo de mudança deve ser capturado para aprofundar os processos democráticos, e não interrompê-los, neutralizá-los.

Votei em Dilma Rousseff porque acredito que as ruas são ingovernáveis e temos que lutar contra a financeirização da vida, seja de onde for, e vejo que partindo da cultura pode-se reinventar o Brasil, transformando precariedade em potência. Não é fácil, dentro de um ambiente político hostil e cenário econômico difícil, mas o que nos move são as dinâmicas dessa própria luta que ressignificam o presente urgente e inventam futuros alternativos.