Após 83 dias de greve, a assembléia deliberativa do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional (Sinasefe), seção sindical São Paulo, foi, como não poderia deixar de ser, tensionada pela pressão de pais e alunos do Centro Federal de Educação Tecnológica de São Paulo (Cefet/SP), desgastados e já estressados com a inquestionável morosidade das negociações entre servidores e governo para a solução do impasse. Esta morosidade, astutamente creditada pelo governo na conta da suposta inflexibilidade da categoria e suas pragmáticas razões, é um fato que permaneceu e permanece oculto em toda a cobertura jornalística – bem tardiamente interessada – sobre a greve no ensino público federal.
Que a mídia é conivente por ser subserviente, já se sabe há muito. Mas, infelizmente, a população, não. Escusado é mencionar que as matérias sobre a greve, via de regra, acabam demonstrando, porque mostram mesmo, os números manipulados do governo, num claro papel de agência de comunicação oficial. É um tal de ‘ganhos reais acima da inflação’, ‘50% de aumento real para os professores federais’, ‘valorização real da carreira docente’, e por aí vai. E a sociedade em geral cacifa esses argumentos falaciosos, que põem chifres e rabos nos professores porque ‘deu no jornal’.
Pode ser que nenhum jornalista vá atrás para averiguar porque dá muito trabalho estudar todos os lados da questão. Realmente, a problemática surge como não tendo uma solucionática imediata porque é extremamente complexa, não dá para ficar no plano superficial da notícia self-service. Ou será que é porque nenhum jornal queira bancar a investigação, demorada quando séria, e a subseqüente exposição dos fatos tais quais eles afetam as partes envolvidas? É assim que a imprensa fica conivente. E subserviente.
Chifres e rabos
Havido algum tumulto na assembléia do Sinasefe-SP em 22/11, várias filmagens e muitas entrevistas foram feitas durante o evento. No entanto, na edição do telejornalismo do SBT, só foi ao ar (por que será que não me espanto?) a seqüência em que um grupo de alunos forçava a entrada no auditório, superlotado de servidores, mas com a presença de representações de pais e de alunos também. Como havia sido acordada a permanência dos demais alunos do lado de fora do auditório, até por questões óbvias de espaço, algumas pessoas do lado de dentro, servidores e alunos, tentaram manter a porta fechada. Daí o breve empurra-empurra, do qual ninguém saiu amarrotado, embora isso pudesse ser ‘espetacular’ – se tivesse ocorrido.
Mas a questão é: por que a entrevista com, por exemplo, o diretor sindical (durante a gravação, as pessoas que estavam com a palavra – e o microfone – tiveram que encompridar uma performance no plano de fundo para dar mais verossimilhança à coisa) não foi ao ar na matéria do jornal? Mas as entrevistas com alunos, que inegavelmente têm sua razão em reclamar, foram exibidas.
De fato, a imprensa é o quarto poder (quando também não fabrica o primeiro, o segundo, o terceiro, o quinto… e todo o inferno). O editor e sua ilha têm mais chifres e rabos que qualquer um.
O modus operandi
Não há o que justificar, tecnicamente falando. Mas há muito o que explicar, filosoficamente falando. E, para arrematar aquilo que não pode, senão deixa de render, vem a luxuosa âncora da emissora e ‘equaciona’ o assunto, ‘fechando’ aquela matéria (e qualquer possibilidade de justificativa para sua gritante parcialidade) assim:
Ana Paula Padrão: ‘Trabalhador tem todo direito à greve, mas isso aí já está realmente passando dos limites, né?’
Né.
Agora vejamos por um outro ângulo (ou outra percepção) o que ocorreu:
Em mais uma edição de greve de uma categoria, observamos mais uma vez o avanço de uma força sub-reptícia, cuja linguagem não-verbal, estando voltada para o desmonte daquilo que incomoda o governo, implanta cisão e crise no único meio que o concebeu e o sustenta: a sua sociedade.
O tradicional modus operandi deste governo, e de todos os conhecidos há décadas, repete o script já batido – estratégia 1: muitas falas bem verbais, que representam proposições que jamais passam do nível simbólico para o plano de ação; estratégia 2: desestabilidade, crise, conflito – esfacelamento. Então, desencontrados sob a suposta tentativa democrática de consenso, revelam-se esfumaçados discursos plurilaterais, porém, infelizmente, cada vez mais divididos, mais radicais, mais unilaterais.
Guerra nada simbólica
A realidade da cisão do organismo social é uma artificialidade construída por uma empresa maquiavélica, por insuflar comodamente o suicídio da ‘anormalidade’, por uma queda terminal entre os dois braços do mesmo corpo. Em 22/11/05, nós, os membros prestadores e os membros receptores de um serviço nobre, encontramo-nos desagregados num corpo estilhaçado que, uno, funcionaria de modo saudável, sintonizado e produtivo: a Entidade Social.
Orquestrados sob a batuta de mais uma gestão federal de descaso com a sociedade e com a educação de que esta necessita, nos vemos fincados em posições cada vez mais antagônicas, numa clara autopredação sem fim. E, como em toda disputa, chega a hora do tudo ou nada, quando pouco falta para o vale-tudo. Na verdade, que tudo é esse e ele vale o quê? Quais, afinal de contas, são os dois braços que, por desperdiçar tanta força, já fazem agonizar o organismo de que dependem? Quais serão os verdadeiros vencedores?
Nesta guerra, nada simbólica, que na verdade ocorre entre um braço do organismo social e o governo, o primeiro perde a unidade, e o segundo perde a condição mínima de existência porque, por não resolver as necessidades do mesmo organismo a que deve servir, não o representa legitimamente.
Esforço de sobrevivência
A irracionalidade e a desproporção das forças, neste território em que todos se encontram relacionados e atrelados, diferenciados e antagônicos, desencadeiam a ruptura drástica com o que quer que seja o ‘espírito comunitário’ e com o ‘paradigma democrático’. Essa força insana, visivelmente destrutiva, é a arma clássica para abalar não só as visões do mundo, mas também as convicções. É nesta encruzilhada em que nos encontramos, e encontramos, também, o vale-tudo.
Superado o vão conceito de civilidade, noção ora incômoda, não obstante milenarmente aperfeiçoada, vencida a possibilidade da linguagem verbal na e até mesmo a comunicação, entramos no domínio darwiniano, no qual, por lei, vencerá o mais forte porque sua razão é instrumental.
Inútil seria ao governo recorrer à arte bélica dos canhões da incompreensão e da discórdia se a poesia das rosas brancas (ofertadas aos angustiados professores em 22/11 por pais desesperados – o outro braço-vítima do organismo em guerra) compusesse a razão humana nesta sociedade autocentrada, geradora e resultante da canhestra máquina governamental. Mas as rosas brancas têm seus espinhos, que, ao aliviarem as mãos que as oferecem, ferem as mãos que as recebem. Contudo, no início e no fim, uma sempre quis a possibilidade de continuar lavando com eficiência e, a outra, a possibilidade de ser bem lavada, numa admirável relação de mutualismo. No entanto, quanta adversidade… e quanta adversativa… A racionalidade humanizada encararia os canhões onde eles realmente estão e, com todas as mãos limpas e sem espinhos, seguraria a artilharia indecente num esforço de sobrevivência coletiva.
O caos no drama
Mas, ‘a crise da razão se manifesta na crise do indivíduo, por meio da qual se desenvolveu. O indivíduo antigamente concebia a razão como um instrumento do eu, exclusivamente. Hoje, ele experimenta o reverso dessa autodeificação. A máquina expeliu o maquinista; está correndo cegamente pelo espaço. A razão tornou-se irracional e embrutecida. O tema deste tempo é a autopreservação, embora não exista mais um eu a ser preservado’ [Max Horkheimer, Eclipse da razão, Editorial Labor do Brasil, Rio de Janeiro, 1976, p.139, extraído de Teorias da globalização (1996), do sociólogo Octávio Ianni; consultar também Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985].
Destituídos de nós mesmos, verificamos que metáforas de rosa e guerra são comunicantes, o que uma promete, a outra confisca, o que uma encobre, a outra escancara: a dor do espinho ou a consolação da vitória, o sinal de paz que traz a guerra, a declaração de guerra em busca da paz.
Tais são as configurações e movimentos da sociedade atual, cuja fisionomia, ao ver o caos no drama da realidade, torna-se também caótica. E, além de arrastar o peso do caos, mitifica a culpa. No entanto, para resolver o real problemático, difícil, exorciza o caótico pelo aniquilamento pragmático do que já se acha culturalmente aniquilado: os valores humanos e comunitários.
– Princípios, ética, moral? – Não. É mais simples buscar a culpa.
Só culpados
E fica só o protesto diante do presente, ou o estranhamento em face da realidade brutal, porque a sociedade, seus braços e mãos, se vêem amarrados a valores imediatos, concretos, que, no fim, ou são financeiros ou levam a eles. Então, não ao esforço coletivo para negociação e acordo, mas negociatas e culpas. Quando se multiplicam os desencontros entre as mais diversas esferas da vida sociocultural e das condições econômicas e políticas, exige-se mais da reflexão e da imaginação. No entanto, não à responsabilidade e à construção da consciência, mas a caça às bruxas.
A solução das inquietações se mantém escondida na rede desencontros que atravessam a sociedade; quando de repente tudo se precipita, abalando quadros de referência, transformando as bases sociais e imaginárias de nosso tempo, dissolvendo visões do mundo, a sociedade se auto-imola.
Finalmente, simulacros de governos seguirão repetindo suas velhas receitas de eliminação do impasse, até eliminarem o estorvo do reconhecimento da necessidade que gerou o impasse, com habilidade e força aplicadas na deseducação que constrói uma desnecessária sociedade de autômatos. Sob a fumaça de muitas falas, verbalizadas pelos três lados envolvidos na problemática, proposital e meticulosamente cindidos, discursos mascarados com uma pseudodemocracia pseudoconsciente só fabricarão pseudo-soluções, e não teremos nem sociedade nem instituições, só culpados.
Sob o beneplácito ativo do quarto lado da questão: a imprensa conivente.
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Professora, mestre em Filologia e Língua Portuguesa