No auge das discussões políticas, ao longo do século 19 e ainda por boa parte do século 20, não era de se supor que o capitalismo viesse a ser confrontado por qualquer força cuja organização não tivesse seu enraizamento em movimentos sociais e/ou partidários. Durante bom tempo, a crença na força da ideologia sustentou a utopia da transformação. Todavia, o ritmo do desenvolvimento e a aceleração do progresso, alavancas da voracidade capitalista, se encarregaram de despertar a ira da natureza. Esta, por sua vez, tem tratado de devolver, como resposta, a ameaça de extermínio da vida no planeta.
A reação primeira se deu na parceria entre cientistas e agentes políticos com a germinação, em diferentes partes do mundo, de movimentos político-sociais dos mais diversos, organizações não-governamentais (Greenpeace, Partido Verde e outros). A despeito de conquistas aqui e ali, a verdade é que a marcha feroz da máquina multiplicadora do capital não estancou sua estratégia predatória.
Mesmo ante os mais inquestionáveis sinais de mutações climáticas que têm intensificado catástrofes sucessivas, continua prevalecendo o ímpeto insaciável das mega-corporações na cega perseguição de ininterruptos lucros. Essa é a extração crítica que se pode materializar do que resultou de mais uma reunião do G-8. Como cínica maquiagem, surgiu a ‘brilhante’ solução de pensarem-se novas estratégias até 2050. A classe política, há algum tempo, dotada de perfil humorístico, numa espécie de ‘galhofa séria’, ofereceu aos cidadãos do mundo essa decisão. A mídia, por sua vez, afora alguns editoriais, como sempre, se limitou a reproduzir, em textos e fotos, momentos do ‘evento’.
Quem responde?
Mais as fotos do que os textos premiaram os leitores com cenas entre melancólicas e risíveis. Todos os políticos de plantão se esmeraram em cordialidades e amenidades mais adequadas a ‘churrasco de confraternização’ do que a análises substanciais que teriam, como pano de fundo, a sobrevivência da espécie humana.
Seja em âmbito nacional, seja em esfera internacional, a cobertura jornalística sobre o encontro do G-8 perdeu mais uma oportunidade de interferir criticamente. As empresas de comunicação, atreladas a interesses de seus patrocinadores, optam por não correr riscos maiores. É impressionante que, de centenas de páginas já destinadas à tematização do aquecimento global, em nenhuma haja espaço – sequer para cientista – no tocante, por exemplo, à influência de milhares de golfadas de querosene que os jatos cospem a 10 mil metros de altitude. A propósito, igualmente cabe indagar quantos cientistas, no mundo de hoje, poderiam falar com absoluta isenção. Deixamos algumas questões para mero exercício de pura ingenuidade:
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O que um jato libera de queima de querosene na atmosfera equivale a 5.000 canos de descarga simultânea dos automóveis. Para a mídia, entretanto, é mais cômodo fazer reportagem sobre nova tecnologia automobilística.**
Quem vai imprensar companhias aéreas para a diminuição drástica de vôos, quando se sabe que a aviação comercial é a viga de sustentação para a aceleração dos negócios no mundo?**
Quem vai conflitar abertamente a política extrativista com a qual se amplia a oferta de consumo?**
Quem vai desmascarar a indústria bélica cuja riqueza deriva do aumento de combates?Agenda excitante
As reais questões são percebidas e sabidas por qualquer cérebro razoavelmente instruído. A formulação deliberadamente ingênua das perguntas anteriores serve para indicar o território repleto de aporias em que a população mundial está imersa. Não basta a percepção. À percepção, faltam os instrumentos da ação transformadora. A lógica capitalista, há muito, tem plena clareza quanto a isso, razão pela qual segue a trilha desenhada. No mundo do capitalismo integrado, não há espaço de manobra para a circulação do pensamento crítico. Nele, há apenas brechas, espasmos de locução. Como resultado, cada qual se volta para os problemas internos, seus projetos de afirmação, ficando no horizonte a promissora (trágica) promessa de ‘até 2050!’ Algum repórter poderá entrevistar uma ‘geleira’ disponível para saber o que ela pensa a respeito. Se ela tem intenções de derreter antes e, dependendo de suas proporções, fazer desaparecer a vida costeira. Os ponteiros do relógio da natureza não giram no mesmo compasso dos ponteiros do relógio do capital.
Bem, mas a Copa América vem por aí. Depois, haverá o frenesi do ‘Pan’, mais alguns vazamentos de escândalos, mais operações mirabolantes que limparão a sujeira a fim de abrirem-se espaços para outra. Com tal agenda excitante, fica, para muitos, a sensação de que desta vez vamos… Ocorreu-me, porém, citar a estrofe final da belíssima criação de Carlos Drummond de Andrade, ‘José’:
‘Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?’
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA – Rio de Janeiro)