Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Autocrítica de uma colunista visceral

Outro dia Fernando Morais investiu contra a Folha de S. Paulo. Motivo: o jornalão paulista tinha lhe atribuído uma ação que não existiu [veja aqui]. O escritor sugeriu, então, que a Folha substituísse o costumeiro ‘Erramos’ pelo mais apropriado ‘Mentimos’.

Em sua coluna ‘Desaviso’, na edição de dezembro da Caros Amigos, a jornalista e escritora Marilene Felinto, à sombra da sugestão de Morais, dispara petardos contra o ‘jornalismo vagabundo da classe dominante’, nas palavras dela. A contundência e a indignação da colunista têm dado o tom da coluna. Marilene é visceral, agressiva, sem peias. Seu livro Jornalisticamente incorreto (Record, 2001), reproduzindo suas crônicas publicadas na Folha entre 1997 e 1999, tem uma amostra da fúria demolidora com que ela investe contra assuntos expurgados do noticiário tradicional, e contra intocáveis incluídos num índex de proteção da mídia. Caso de Antonio Carlos Magalhães.

Se em reiteradas ocasiões Marilene vem fustigando o veículo dos Frias, em seu novo texto ela leva o ato de demolição ao paroxismo. ‘Se tem uma coisa da qual eu me envergonho hoje é ter assinado meu nome, por doze anos seguidos, na água lamacenta das páginas de certa imprensa paulista.’ Desnecessário dar nome aos bois.

Não cabe especular sobre o que veio a gerar o ponto de atrito entre a jornalista e o ex-patrão. Marilene jamais tornou público o real motivo da sua saída da Folha. Importa que a sua diatribe do mês é uma pérola raras vezes vista de autocrítica feita publicamente por um profissional veterano desencantado com a profissão. Pode ser entendida como um alerta para os mais jovens, um ponto de identificação para os que têm vivenciado turbulência semelhante, ou simplesmente um ato de coragem de expor o que ela admite como ‘crise profissional’.

Da sua experiência jornalística, Marilene diz não guardar arrependimento. Nem amargura. Sente-se apenas envergonhada pelo tempo perdido, ‘doze anos que não serviram para nada’. Mas considera-se salva pelo fato de ‘não ser formada pela inútil carreira do jornalismo’.

Seria talvez o caso de evocar o velho Guimarães Rosa: ‘pão ou pães, é questão de opiniães’. Que os interesses jornalísticos têm sido cada vez mais regidos pelo deus mercado do que pela democratização da informação, quem há de negar? Como o Bombril, o jornalismo tem apresentado mil e uma utilidades, mas nenhuma que o faça manter uma distância salutar do poder e dos poderosos. Aliás, na mesma edição da Caros Amigos, é o escaldado Mino Carta quem dá o tom preciso: ‘A mídia sempre esteve a favor do poder’. Não é o caso de se acreditar em conspirações, mas que las hay, hay.

Veia aberta

Talvez não fosse também o caso de se decretar a inutilidade do jornalismo. Essa vetusta instituição, apesar dos seus vezos, ainda tem um serviço a prestar à democracia. Mas Marilene esboça cansaço do joio jornalístico. Afinal, doze anos não são doze dias.

Em sua autocrítica, ela concluiu que línguas e literatura, áreas que estudou na USP, também não seriam suficientes como profissão. Até porque Marilene escarnece do status de ‘profissão’ atribuído a escritores e ficcionistas. Isso é uma ‘mitificação idiota’, diz. ‘A área das artes é cheia dos grupelhos de falsos talentos bajulados e bajuladores.’ Como escritora, Marilene produziu quatro romances, sendo que um deles – Mulheres de Tijucopapo – mereceu láurea da União Brasileira de Escritores (1981) e o Prêmio Jabuti (1982).

Ela se questiona se não poderia ter permanecido na academia. Ao relembrar a experiência, descarta também essa opção. ‘A rigidez do método me sufocava. E sempre achei a academia, em certo aspecto, um ninho de cobras… inofensivo, é bem verdade, pois que só devoram umas às outras.’ Na coluna, Marilene fala de uma conversa que teve com o escritor Raduan Nassar, também ele um drop-out, um desistente da profissão. Discutiram os males do mundo. Acabaram por partilhar uma mesma idéia para tornar a vida mais saudável: abdicar da leitura diária de jornais e revistas.

A veia que Marilene Felinto abre e mostra com despudor só indica a dificuldade que reveste hoje o exercício crítico da profissão, sem que seja preciso se render às reengenharias de Navarra, sem que se engrossem as fileiras anódinas das assessorias de imprensa, sem que se diga amém aos interesses políticos dos donos dos meios de comunicação.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias