Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Banditismo ou narcoterrorismo, a questão é política

O último debate travado na mídia americana a respeito do banho de sangue no Iraque foi rigorosamente semântico: ‘Guerra civil ou resistência?’. Para a Casa Branca, uma guerra entre xiitas e sunitas (guerra religiosa, portanto civil) equivalia ao reconhecimento do seu fracasso. Mas a opção contrária (resistência à intervenção americana e ao governo iraquiano) é prova do mesmo malogro. A semântica, como se sabe, não resolve problemas, no máximo ajuda a formulá-los.


Na sua coluna de sexta-feira (30/12), na primeira edição do Globo (pág. 4) depois dos ataques das facções criminosas ao Rio de Janeiro, o analista Merval Pereira preferiu usar o genérico ‘violência’ no lugar de ‘terrorismo’.


Terrorismo, segundo ele, teria uma conotação política, já o banditismo representa a luta pelo poder no submundo do tráfico de drogas & afins. O que aconteceu em SãoPaulo a partir de maio de 2006, e agora se repete no Rio, é muito mais do que isso.


A discordância deste observador não é semântica, mas essencialmente técnica: o banditismo é uma forma de luta ostensiva contra o poder do Estado e contra os paradigmas do Estado de Direito. É, pois, uma ação política inequívoca, mesmo que expressa sem palavras ou manifestos, apenas através da brutalidade.


Cobertura desvalorizada


O que talvez facilitasse a compreensão do fenômeno do banditismo contemporâneo seria a sua caracterização como banditismo de massas, irrestrito e indiscriminado, subproduto do conceito de guerra total, ainda que servida por armas convencionais. Por enquanto.


Este banditismo de massas, diferente do formato e da dimensão da Cosa Nostra, gesta-se nos grandes desvãos da exclusão social e urbana, atende às demandas de todos os segmentos (inclusive políticos e empresariais) e seu principal vetor é o narcotráfico.


A melhor maneira de caracterizar o fenômeno que nos ameaça e ameaça grande parte da América Latina seria enquadrá-lo na chave geral do terrorismo, capítulo narcoterrorismo. Só assim estaremos aptos a entender a gravidade das burradas políticas cometidas pelo quase-ex-governador Cláudio ‘Já Vai Tarde’ Lembo quando recusou a ajuda federal para enfrentar os motins organizados pelo PCC. E só assim estaremos aptos a avaliar a decisão política do governador eleito do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, de assumir que poderá solicitar a ajuda federal depois de empossado.


A discussão não é semântica, mas taxonômica. Sem descrever, classificar e identificar uma situação crítica será impossível encontrar os meios para acompanhá-la (no caso da imprensa) ou enfrentá-la (no caso das autoridades).


Na fase final do regime militar, a imprensa brasileira fez a opção pelo mercado e entregou-se à obsessão novidadeira. Neste delírio perdeu a noção das pautas permanentes e desgarrou-se dos compromissos com o interesse público. Esqueceu os repórteres e apostou nos colunistas.


A cobertura dita ‘policial’ livrou-se dos velhos setoristas que cobriam as delegacias e hospitais, até ganhou dimensão pelo volume das ocorrências, mas continua confinada às páginas ou cadernos locais, geralmente mirrados. Em ocasiões excepcionais (cada vez mais freqüentes) recebe tratamento VIP que logo evapora.


Tarde demais


Falar em segurança é desagradável, cria inseguranças. Nossa mídia está sendo treinada pelos anunciantes para apostar em futilidades, modismos, leveza. Nas redações criou-se a convicção de que a questão da violência deixa de ser palpitante e crucial para se transformar em chata quando tratada por especialistas.


Prova disso é a edição da Folha de S.Paulo de sexta-feira (29/12), com a extensa cobertura da onda de violência no Rio. No alto das cinco páginas (‘Cotidiano’, págs. 3-7) vistosos destaques com frases de gente famosa: entre as dez celebridades escolhidas para se pronunciar apenas um deputado e um ex-ministro/economista: as outras oito foram escolhidas no fascinante mundo do entertainment e do jet-set. Nada contra sua condição ou fama, mas a seleção poderia ser demograficamente mais equilibrada.


O problema da violência, banditismo ou narcoterrorismo (qualquer que seja o nome adotado) está entre as prioridades dos eleitores, mas raramente é exposto nos cadernos nobres ou nas páginas de política. É eminentemente político tanto pelo viés de um Cláudio Lembo como pela ótica de um Sérgio Cabral. Mas não merece a mesma continuidade das coisas da política.


A recente serie de reportagens do Globo, denunciando as milícias paramilitares que no Rio e no interior do estado disputam com as diferentes facções o controle de morros e favelas, teve alguma repercussão mas não conseguiu impor-se diante da vocação geral para a inércia e a preocupação com as variedades.


O tema das milícias foi tardiamente reavivado na manchete do Globo da sexta-feira (29). Tarde demais, o que deveria funcionar como advertência transformou-se em fato consumado:



** ‘Facções se unem contra as milícias e levam terror ao Rio’


CQD. Como Queríamos Demonstrar.


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Em tempo [às 18h19 de 30/12): Na edição seguinte (sexta-feira) de O Globo, Merval Pereira voltou ao assunto para responder às ‘inúmeras mensagens’ que recebeu a propósito de sua coluna do dia anterior, em novo texto sob o título ‘O que é terrorismo’.