EmBem-vindo ao deserto do real (2003), o filósofo esloveno Slavoj Zizek apoia-se na psicanálise freudiana para sustentar o argumento de que, tal como o aparelho psíquico de Sigmund Freud, o mundo, após o 11 de setembro, adquire cada vez mais uma estrutura inconsciente tripartite, de modo que é possível encontrarmos periféricas regiões do mundo nas quais imperam as liberadas pulsões primitivas do Id, assim como regiões outras mais parecidas com o Superego, nas quais e através das quais o poder é exercido por meio de uma força bélica sem limites; e por fim um mundo que corresponderia ao conceito freudiano de Ego, pois seria o equilíbrio entre o Id e o Superego.
Para Slavoj Zizek, o Id corresponderia ao que usualmente chamamos de terceiro mundo, esse sombrio lugar em que os desejos mais inconfessáveis encontrariam o caminho aberto para se realizarem, de modo descontrolado e irreprimível, em função do abandono histórico de um enorme contingente humano que, sem alternativas, ou se submete ao violento sistema de opressão que os humilha, anula e empobrece ou responde à pior violência que pode sofrer qualquer pessoa – a miséria – com a prática de furtos, tráfico e consumo de drogas, estupros, ignominiosa opressão de gênero, étnica, etária e assim por diante.
Por sua vez, o superego, como contraponto ao Id, corresponderia ao imperialismo americano, principalmente após o 11 de setembro, o qual responde a barbárie da miséria do terceiro mundo com igualmente inominável repressão, através de guerras de pilhagem, genocídios, escravidão por dívida, submissão, sempre com o objetivo de conter as cada vez mais violentas “formas criminalidade” das famintas hordas humanas da periferia do sistema ou simplesmente usando como pretexto o risco de explosão incontrolada dessa multidão de humanos, acusando-a de narcotraficante ou terrorista, para invadir seus países e sequestrar seus recursos naturais, como aconteceu com Iraque, Afeganistão, Sudão, Congo e mais recentemente com Líbia.
A pressão genocida de um Superego imperialista
Como ponto de equilíbrio entre o Id e o Superego, entre o terceiro mundo e EUA, Slavoj Zizek argumenta que o Ego do mundo corresponderia à herança civilizacional europeia, com sua cultura e saber laicos dotados de plasticidade crítica e de autocrítica, razão pela qual o filósofo esloveno acredita que a opção mais promissora para a humanidade seria a de incorporar e levar adiante os melhores aspectos humanísticos da civilização europeia, eliminando da face da Terra tanto o Superego imperialista americano como o bárbaro Id incontrolável do terceiro mundo.
Embora reconheça a pertinência da análise de Slavoj Zizek, considero-o equivocado, tendo em vista antes de tudo a referência comparativa que utilizou para dar base a seus argumentos, o aparelho psíquico de Freud – marcado e demarcado pela ininterrupta dinâmica interação entre Id, Ego e Superego –, pois não constitui um modelo analógico aplicável ao mundo contemporâneo, nos termos propostos por Zizek, seja sob a ótica da primeira versão de Freud em relação à sua teoria do inconsciente (na qual a estrutura psicológica definida pelo Id, o Ego e o Superego não tinha sido concebida ainda em seu dinamismo interacional); seja no que tange à segunda versão, na qual Freud considerou o dinamismo e a ininterrupta interação entre o Id, o Superego e o Ego, inclusive propondo que este último fosse a base da civilização, residindo aí a fonte de inspiração de Zizek.
Penso que o modelo comparativo de Zizek não é pertinente porque a modernidade capitalista, desde sempre se constitui, sem contradição alguma, tendo em vista as duas versões propostas por Freud, no que diz respeito ao aparelho psíquico, razão pela qual é simultaneamente dotada de uma estrutura produtiva libidinal estanque e outra dinâmica, no que diz respeito aos traços sociais de Id, de Ego e de Superego, caso insistamos no uso da analogia.
No interior da modernidade capitalista não existe a mínima possibilidade de um Ego, em termos freudianos, universal. Não existe, pois, a mais remota hipótese de uma expansão, para todos os humanos, de um modelo civilizatório baseado em um humanismo europeu ilustrado, através do qual todos possamos nos beneficiar de uma racionalidade inclusiva – filosófica, científica e estética –, de tal sorte a nos livrarmos de vez das imprevisíveis e incontroláveis pulsões bárbaras de um Id periférico, assim como da não menos brutal e insensata pressão genocida imposta por um Superego imperialista.
Subsídios para a compreensão da crise
Na modernidade capitalista sempre haverá Id, Ego e Superego e de tal forma misturados que mal sabemos se o Ego de fato não é o Id disfarçado ou o Superego escondido, uma vez que ela se constitui como jogo estratégico entre as três dimensões do aparelho psíquico, na perspectiva freudiana, de tal modo que, conforme as circunstâncias históricas, ora prevalece o Id, ora prevalece o Ego, ora o Superego, embora, insisto, os três personagens da ficção psicanalítica freudiana são tanto mais eles mesmos quanto mais são o outro.
No capitalismo, o ego é tanto mais ego quanto mais é Id e Superego e a mesma coisa é possível dizer em relação ao Id e ao Superego. A modernidade capitalista é isto: um Id ambulante, que ora banca um Ego sensato, racional, justo e inclusivo, como farsa para continuar sendo Id; ora se apresenta como o próprio Superego repressor e que só sabe dizer não a quaisquer legítimas demandas do desejo dos povos da periferia do sistema-mundo, pois sempre as acusará de serem bárbaras, insensatas, impossíveis, filhas de Id.
Se a estrutura psíquica de Freud pode ser usada como referência analógica para as relações geopolíticas do planeta assim é possível ser apenas sob o ponto de vista de que ela é imutável, porque o capitalismo sempre precisará do bode expiatório de um Id como pretexto para o incremento sem fim de seu poderio bélico, que é o lado Superego da coisa, sob a desculpa de garantir a continuidade da civilização, logo do Ego.
Entendo que o uso da analogia entre geopolítica e o aparelho psíquico de Freud procede apenas sob o ponto de vista da análise de como se posicionam Id, Ego e Superego em cada época da modernidade capitalista, o que pode fornecer importantes subsídios para a compreensão da crise do capitalismo atual.
As narcisistas tecnologias individuais
A era neoliberal em crise em que nos encontramos é esta em que o Ego civilizacional do Ocidente, principalmente o norte-americano e europeu, foi sequestrado pelo Id que esse mesmo Ego trazia em si, sob a forma de concentração egoísta de renda; de patentes exclusivas sobre poderes e saberes e viveres.
Eis porque não existe surpresa nos rumos do Ego da desordem neoliberal atual, pois a principal tendência do capitalismo – a concentração de riquezas – é tipicamente estilo Id e constitui, como sabemos, a essência do neoliberalismo. E é em nome dela que, principalmente na década de 90, o Ego europeu e americano, argumentando a necessidade de livre comércio, sequestrou os ativos da periferia do sistema, no exato momento em que essa periferia pleiteava mais que nunca a sua participação universal e inclusiva no estado de bem-estar social, arrasando os vestígios de um Ego periférico onde ele existia, ainda que como promessa, sob a forma de ativos estatais a serem usados em benefício das coletividades.
Esse retorno da acumulação primitiva do capital, em pleno final do século 20, reforçou não o Ego, em termos freudianos, mas o egoísmo tipicamente estilo Id, encorajando-o a continuar avançando em seu desenfreado querer mais e mais apenas para si, como um bebê mimado, de modo que a lógica atual passou a ser esta: o ataque imoral do Id do capitalismo contemporâneo a todos os ativos existentes no planeta, independente de onde estejam ou existam. É ativo o Id do capital – sob a forma do domínio das finanças – quer porque quer para si, razão por que agora ataca os ativos dos estados do centro do sistema, Estados Unidos e países europeus, assim como intensifica as guerras imperialistas, no pior estilo Superego, a fim de continuar sequestrando as riquezas da periferia do sistema, principalmente as que dizem respeito aos recursos naturais como petróleo e minerais valiosos para as narcisistas tecnologias individuais – plenas de Id – do mercado mundial, como insumos fundamentais de celulares, computadores, tais como lantânio, neodímio, cério dentre outros, também conhecidos como terras raras.
A fome insaciável de ativos define o neoliberalismo
E como na modernidade capitalista o Ego é Id, porque vive “racionalmente bem” através da concentração de privilégios econômicos, sociais, estéticos, tecnológicos, o centro imperial desse modelo de civilização vive uma profunda crise de identidade precisamente porque o Id vive de fazer guerras contra tudo e todos e às vezes contra si mesmo, que é o que está ocorrendo agora e que está levando rapidamente à decadência de Estados Unidos e da Europa, os quais, por isso mesmo, estão perdendo a olhos vistos suas respectivas posições privilegiadas (de um Ego que é Id e é Superego) no sistema-mundo, porque o Id que sempre alimentaram (por ser a essência do capitalismo) está em guerra desenfreada contra seus próprios ativos, ao mesmo tempo em que impõem, de modo não menos desenfreado, o superego imperialista ao mundo não norte-americano e não europeu, o que explica o descalabro da atual invasão imperialista da Líbia, fundada em mentiras e hipocrisias que fariam constranger qualquer Id de um sistema psíquico minimamente saudável.
A decadência do centro do Ocidente, portanto, reside na radicalização, no interior da pós-modernidade neoliberal, dos dois lados mais perversos do sistema-mundo capitalista: o Id e o Superego, os quais são opostos e complementares, pois quanto mais Id, no capitalismo, mais concentração de renda ocorrerá.
Já vimos, a propósito, que esse estrambótico casamento entre o Id e o Superego do centro do sistema capitalista levou-nos às duas grandes guerras mundiais no século 20, razão por que é o principal perigo atual de uma hecatombe planetária.
Devemos saber, por consequência, que essa esdrúxula união de extremos que se tocam pode acabar com o fim da vida na Terra, razão por que mais do que nunca deve ser contraposta por um sensato, determinado, estratégico e incisivo protagonismo dos países que não ocupam o centro do sistema-mundo atual; protagonismo que não pode ser recusado e muito menos deve esmorecer diante das pressões descabidas e funestas resultadas do fruto do casamento entre o Id e o Superego dos poderes constituídos entre Estados Unidos e Europa, como ocorreu na reunião do Conselho de Segurança relativo ao bloqueio aéreo de Líbia, na qual a omissão de países como Brasil, Rússia e China foi crucial para o desfecho trágico que vimos, com o desrespeito dos princípios básico não apenas dos argumentos arregimentados para propor e justificar o bloqueio aéreo (afinal o bloqueadores fizeram precisamente aquilo que acusavam Kadafi de querer fazer: o massacre de civis, além da destruição da infraestrutura do país), mas também dos princípios mais elementares da Carta da ONU, literalmente jogada no lixo, pois a fome insaciável de ativos é a que define o capitalismo neoliberal pós-moderno e é ao mesmo tempo a que torna o Superego um Id e um Ego, sem distinção.
A teatralização de falsas revoltas
E, na caça desenfreada de ativos, as tecnologias de comunicação não ficam evidentemente fora da partilha narcísica das elites globais, de modo que seus ativos são igualmente sequestrados de três modos complementares:
1) Através da inserção no terreno de um fato consumado: a cultura tecnológica da comunicação estilo Id ambulante, sob a forma de celulares, iPod, iPed, tablet iPhone, iPad.
Essas tecnologias de comunicação estilo Id que estão espalhadas por todo o planeta contribuem negativamente para sedimentar um sistema de comunicação fundamentalmente marcado por narcísicos desejos individuais, razão por que o principal efeito mundial que produzem é o de instaurar formas de comunicação que melhor podem ser chamadas de comunicações noveleiras, nas quais prevalece o intercâmbio despolitizado entre parentes, namorados, amantes e fofoqueiros, na pressuposição de que aí reside a esfera democrática: no direito de mercado a um Id de subjetividades autocentradas, através de não menos autocentradas mercadorias de comunicação interindividuais.
Haja Id!
É claro – e esse é um dos desafios atuais – que essas tecnologias podem ter outros usos, não individuais apenas, de modo a serem apropriadas com o objetivo de servirem de suporte comunicativo a formas instantâneas e coletivas de comunicação entre revolucionários ou simplesmente entre integrantes de movimentos sociais ao estilo desses que se espalham pelo planeta, nos países da Ásia, África, Europa e das Américas, chegando ao centro imperial do sistema, Estados Unidos, com, por exemplo, o Occupy Wall Street.
Também é claro que essas tecnologias podem ser manipuladas pelo Superego do sistema-mundo atual de n maneiras, através de novas formas de espionagem, de controle de informação, de teatralização de falsas revoltas e revoluções contra governos que não interessam ao Superego e Id – no fundo uma coisa é outra – das multinacionais e banqueiros antes de tudo americanos e europeus, como ocorreu recentemente em Líbia e está acontecendo na Síria e já ocorreu no Irã, assim como continua a ocorrer em diferentes lugares do planeta.
Ocupemos a maçã das mídias
2) O segundo modo atual de sequestro narcísico das tecnologias de comunicação está relacionado com a gestão mundial da cultura de massa cujo objetivo principal é o de produzir universalmente um perfil humano estilo Id, banal, egoísta, superficial, tolo e preocupado única e exclusivamente com seu próprio destino de Id, querer, querer, querer: as mercadorias Id.
É a cultura do cada um por si, inclusive Deus.
3) O terceiro modo está relacionado com a concentração mundial dos meios de comunicação de massa, nos níveis da produção de recursos tecnológicos por grandes multinacionais como Microsoft; assim como no nível do controle dos espectros radioelétricos por grandes empresas de comunicação, sempre consorciadas direta e indiretamente umas com as outras, como é o caso das corporações privadas de comunicação – e muitas vezes as estatais – do mundo todo e, por último, no nível do consumo, pois o principal objetivo da concentração monopólica dos dois níveis anteriores é o da produção em série planetária de um consumidor estilo Id cujo desejo descontrolado é o de consumir as mercadorias estilo Id, conseguindo, assim de forma imperial, de sol a sol, o domínio do seguinte círculo vicioso: Id é igual a Id ou Id mais Id é Id, que multiplicado por Id, é tanto Id ao quadrado, ao cubo, aos bilhões.
Não é casual que esse sistema de comunicação estilo Id elegeu como seu mais recente gênio o norte-americano Steven Jobs, por ter criado, através da empresa Apple, toda uma série de artefatos de comunicação chamados de I ( eu, em inglês), ipod, ipad, iphone, pois se trata disto mesmo: de uma questão de eu, palavra que corresponde, nesse contexto, ao conceito freudiano de Id.
Tudo se tornou uma questão de eu, eu isso, eu aquilo, eu aquilo outro. O Id domina o mundo em que vivemos e seu desejo é gozar com a posse desses objetos fálicos de comunicação, verdadeiros vibradores de comunicação, os quais têm como omplementar polo os não menos fálicos mísseis de Superego que caem sobre as cabeças dos povos que estão impedidos de gozar também, pela simples razão de que não existe mundo para tanto Id querendo, querendo, 24 horas por dia, seu próprio assassino gozo.
Bem-vindos ao deserto da solidariedade e das coletividades.
Bem-vindos, enfim, ao deserto da civilização ocidental capitalista, esta que transformou o mundo numa maçã e põe sete bilhões de pessoas para disputá-la, a maçã-mundo, embora apenas um por cento da população mundial a esteja devorando barbaramente.
Ocupemos a maçã das mídias corporativas: alma do negócio de tudo isso!
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]