A era digital gerou novas oportunidades culturais e econômicas ao mesmo tempo em que evidenciou as implicações sobre autoria e propriedade intelectual. Para a socióloga Carla Belas, um dos grandes desafios diante da evolução das novas tecnologias de reprodução é diferenciar a apropriação indevida do direito à informação. ‘Os contratos de creative commons atestam essa maior autonomia do autor no que diz respeito ao exercício de seus direitos autorais sem a necessidade da mediação de uma gravadora ou editora’, afirma.
Nesta entrevista, a consultora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e colaboradora da equipe de pesquisa do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular comenta ainda a importância de valorizar o patrimônio imaterial do país.
Uma maior autonomia do autor
O que mudou no âmbito da propriedade intelectual e dos direitos autorais na era da internet? Como lidar com essas duas matérias em meio à revolução causada pela web?
Carla Belas – O avanço das novas técnicas de captação, reprodução e difusão de sons e imagens tem implicações diretas sobre os tradicionais conceitos de autor e propriedade intelectual. Autores como Walter Benjamin, Gilles Lipovetsky e Néstor García Canclini apontam para uma perda gradativa da importância da ideia de autoria e de ‘autenticidade’ a partir do uso de novas tecnologias de reprodução. A era digital amplifica os potenciais de uso, apropriação e modificações de obras autorais, de forma a gerar imensas dificuldades para o controle dessas obras por parte dos autores e dos titulares de direitos de propriedade intelectual. Por outro lado, gera também novas oportunidades de negócios e difusão dessas obras.
As legislações dos países, apesar das inúmeras revisões feitas desde a Convenção de Berna (1886), não têm conseguido acompanhar a rapidez das mudanças e, principalmente, não conseguem enfrentar os crescentes conflitos envolvendo os direitos dos autores e titulares de obras autorais versus os direitos das sociedades de acesso à informação. É inegável que as novas tecnologias são responsáveis por uma maior democratização do acesso à informação. Os autores não dependem mais exclusivamente de um contrato com uma grande gravadora ou editora para difundir as suas obras. Com alguns equipamentos simples – um computador, um gravador e uma câmera digital – é possível gravar músicas e fazer vídeos para em seguida difundi-los para milhares de consumidores na internet. Os contratos de creative commons atestam essa maior autonomia do autor no que diz respeito ao exercício de seus direitos autorais sem a necessidade da mediação de uma gravadora ou editora.
O uso de imagem
Nesse contexto, como ficam os direitos de autor?
C.B. – O outro lado da moeda é que as novas tecnologias da mesma forma que facilitam a difusão facilitam também as apropriações ilegais. O grande desafio é diferenciar a apropriação indevida do direito à informação. No Brasil, as instituições públicas de ensino e pesquisa vivem o dilema de respeitar os direitos autorais e ao mesmo tempo garantir o acesso amplo da população às obras produzidas com financiamentos públicos. O Ministério da Cultura, por meio da Coordenação Geral de Direito Autoral (CGDA), tem proposto a alteração de dispositivos da legislação de direitos autorais em vigor no país, a Lei 9610/98, com o intuito de adaptá-la às novas demandas da era digital e ainda propiciar um maior equilíbrio entre o direito privado dos autores e o direito público de acesso à informação por parte da sociedade. As limitações aos direitos autorais é um dos temas que mais tem despertado polêmica no debate internacional. A ideia é aumentar as possibilidades de a sociedade acessar obras intelectuais protegidas sem necessidade de pedir autorização e de pagar uma retribuição. Alguns países utilizam o chamado uso justificado, ou fair use, no sentido de garantir que o direito de exclusividade do autor não se sobreponha ao interesse público e a função social de obras autorais.
Na área de comunicação, como a economia criativa, a produção audiovisual e a web 2.0 estão inseridas nesse novo cenário também da indústria midiática?
C.B. – O que percebo é que os modos de produção, a partir das novas tecnologias, põem em dúvida a própria ideia clássica de autoria como produto resultante de uma criação individual. Produções cinematográficas, por exemplo, são vistas cada vez mais como produções coletivas, uma vez que o resultado final depende do trabalho e da interferência criativa de inúmeros profissionais que incluem a elaboração de roteiro, filmagem, direção, edição de imagens e outros. Além da questão da produção coletiva, há ainda, tanto no caso dos filmes quanto de fotografia, o problema do uso de imagem. As políticas voltadas para a preservação do patrimônio imaterial têm incentivado um aumento substancial da produção de documentários e pesquisas sobre a cultura popular e/ou grupos étnicos, trazendo a questão da autorização do uso de imagens e a repartição de ganhos comerciais com os grupos filmados para o centro do debate.
Culturas populares como patrimônio imaterial
Os ativos intangíveis, a cada dia, têm o seu valor mais reconhecido. Qual a importância do patrimônio imaterial do Brasil e como ele vem sendo tratado?
C.B. – A importância do patrimônio imaterial já havia sido prevista por Mário de Andrade desde a elaboração do ‘Anteprojeto de Proteção do Patrimônio Artístico Nacional’ em 1936, que incluía a proteção para a cultura indígena e a cultura popular. Essa proposta foi, no entanto, suprimida, com a criação do Decreto-Lei n.25 de 1937, que deu origem ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje conhecido como Iphan. Valorizar a cultura de índios e negros não condizia com a ideia de desenvolvimento da época, voltada para integração em vez da diversidade. Naquele contexto, a opção pela valorização do patrimônio histórico edificado, ou patrimônio material, era a que traria menos problemas políticos, não implicando em reivindicações para o reconhecimento de identidades e direitos.
A ênfase na proteção do patrimônio edificado, chamado ‘pedra e cal’, se manteve até aproximadamente a década de 70, quando, no âmbito internacional, alguns países manifestaram junto à Unesco a preocupação com a salvaguarda da cultura popular. Nesse sentido, sob a liderança da Bolívia, solicitaram a revisão do conceito de patrimônio cultural contido na Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972), afim de que abrangesse além do patrimônio arquitetônico e o natural às diversas expressões culturais tradicionais mantidas ao longo de gerações a partir da oralidade. As reivindicações desse grupo deram início a uma série de estudos e debates que culminaram nos documentos Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultural Tradicional e Popular (1989), Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003) e Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005). Estabeleceram-se, dessa forma, as diretrizes para a salvaguarda do patrimônio imaterial dos países.
No âmbito nacional, essa preocupação se fez sentir a partir da criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) por Aloísio Magalhães em 1975, do Instituto Nacional do Folclore em 1976, e da Fundação Nacional Pró-memória em 1979. Por fim, houve o reconhecimento das manifestações das culturas populares como patrimônio cultural da nação nos artigo 215 e 216 da Constituição Federal de 1988. Esses artigos foram regulamentados pelo Decreto 3.551 de 2000 que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natura Imaterial e criou o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial. Desde a implementação dessa política já foram realizados mais de 90 inventários culturais e 15 bens culturais foram registrados como patrimônio cultural imaterial do país, o que lhes garante recursos do estado para salvaguarda visando à continuidade para as novas gerações.
Promoção de saberes e relações comerciais
Como a boa gestão do patrimônio cultural de um país contribui para seu desenvolvimento em outros setores, como o econômico, por exemplo?
C.B. – A política de salvaguarda do patrimônio edificado tem contribuído para a valorização econômica de várias cidades e geração de empregos a partir da atração do turismo para as áreas restauradas. Da mesma forma, a valorização do patrimônio imaterial surge com a promessa de não apenas salvaguardar a transmissão dos saberes tradicionais para as novas gerações, como principalmente de apoiar a inclusão política e econômica dos detentores desse patrimônio.
A busca por produtos diferenciados e a maior politização dos consumidores favorecem escolhas de consumo a partir de questões ecológicas, sociais e étnicas. Nesse sentido, é cada vez mais comum o uso por parte das empresas de estratégias de marketing que associem seus produtos à sustentabilidade ambiental e a simbolismos culturais e étnicos. Constituindo-se, assim, numa alternativa de desenvolvimento econômico para grupos portadores de bens culturais tradicionais até então alijados dos processos de desenvolvimento econômico nacional.
No entanto, o avanço na implementação dos inventários e registros de bens culturais tem trazido à tona questões referentes à inserção de produtos culturais tradicionais nos mercados, principalmente no que se refere à garantia de direitos de propriedade intelectual contra apropriações indevidas de terceiros. Esse é o caso, por exemplo, das paneleiras de Goiabeiras do Espírito Santo, que após a obtenção do título de patrimônio cultural do Brasil concorrem com um número crescente de produtores de panela de barro da região que usam indevidamente o nome das paneleiras para atrair consumidores. Também, no caso do artesanato do capim dourado do Jalapão, no Tocantins, as comunidades originalmente produtoras sofrem com a concorrência dos demais municípios da região e de outros locais do Brasil após os investimentos do governo local para a valorização do produto enquanto patrimônio cultural do estado. Além da concorrência, o aumento da escala de produção gerou, neste caso, uma pressão sobre o recurso natural que hoje corre o risco de extinção. Nesse sentido, entendemos que a promoção dos saberes e das produções culturais de populações tradicionais no âmbito nacional e global não pode prescindir da assessoria as relações comerciais entre essas populações e o setor produtivo.
Diversidade e criatividade
Qual a importância de se proteger e promover os conhecimentos tradicionais de um povo?
C.B. – Os conhecimentos tradicionais envolvem uma discussão que vai além da salvaguarda do patrimônio imaterial, especialmente os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade que têm gerado um grande interesse da indústria de medicamentos e de cosméticos na descoberta dos ativos da nossa biodiversidade.
A valorização do patrimônio imaterial respeita a diversidade cultural e a criatividade humana e promove a justiça para grupos sociais que vinham sendo mantidos à margem do desenvolvimento econômico dos países. É uma forma tanto de melhorar as condições de transmissão, produção e reprodução de bens culturais as quais são portadores, quanto de fortalecer as condições sociais, ambientais e econômicas que permitem a existência desses grupos e a manutenção da cultura que representam.