Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bioética, fé e transfusões de sangue

O Estado de S. Paulo deu alguma repercussão a caso que envolve morte de jovem de 13 anos cujos pais não autorizaram transfusão sanguínea e há decisão de Câmara Criminal do Tribunal de Justiça quanto a ser levado a júri ou não o casal.

Não observei o mesmo destaque em demais órgãos de imprensa, o que julgo uma falha, pois é assunto de alta relevância – não especificamente o caso em si, mas a noção da autonomia do paciente, deveres dos médicos, aspectos jurídicos, notadamente constitucionais, e mesmo na prática da profissão médica: não é diariamente que aparecem casos envolvendo transfusões e Testemunhas de Jeová, mas há tempos que isso gera polêmica que extrapola os limites teóricos da discussão intelectual bioética.

Assim como judeus, ciganos e homossexuais, as Testemunhas de Jeová também foram alvo da perseguição nazista nos sombrios tempos da Segunda Guerra e seus campos de concentração. É fato conhecido que os que seguem essa doutrina específica não aceitam a transfusão de sangue por motivos religiosos, que refogem a essa análise. Há algumas décadas, quando começaram a aparecer substâncias expansoras de volume, não derivadas de sangue, e mesmo tentativas de ‘sangue artificial’ – como o d-Fluosol, pesquisado pelos japoneses, que acabou por não se mostrar útil –, os seguidores desse credo passaram a assediar, no bom sentido, médicos em congressos, cursos, reuniões e situações similares com fotocópias de artigos científicos mostrando alternativas à transfusão sanguínea. Em parte isso é verdade, mas ainda há muitos casos em que o uso de sangue total ou derivados do mesmo tem que ser administrado, caso contrário o risco à vida de um paciente é extremamente alto. A Bioética, ramo mais recente do conhecimento, dá um grande poder à autonomia do paciente; ele pode aceitar ou não um dado procedimento diagnóstico ou terapêutico, mesmo sem conhecimento da ciência médica.

O caso de atonia uterina

O ideal é que o paciente possua informações suficientes para sua decisão e assine um consentimento informado. Há uma grande influência do modo de pensar da sociedade norte-americana nesses assuntos e o Brasil certamente ainda não os assimilou por completo. Um exemplo que costuma ser sempre citado é de um bioeticista da Universidade de Princeton, Peter Singer, que segue uma linha utilitarista, o que permitiria desde a eutanásia até a recusa completa em receber um dado tratamento. Esse tipo de visão das coisas acaba por se chocar com a Constituição brasileira, por exemplo, no caso da terminalidade da vida. Médicos acostumados a lidar com pacientes de extrema gravidade, como politraumatizados, oncologistas e outros – e sou favorável a essa linha – lutam por não haver decisões ditas como ‘heroicas’, prolongando inutilmente a vida de um doente que se sabe ser incurável, e que apenas sofrerá, com seus familiares, sem benefício algum. Os cuidados paliativos devem ser administrados, o paciente não é abandonado, ao contrário: apenas se evitam medidas dolorosas e infrutíferas. Mas isso encontra discordância entre os próprios juristas – o Conselho Federal de Medicina já editou resolução favorável a isso e o novo Código de Ética Médica em vigor em nosso país também abarca o assunto; mesmo assim, a OAB de São Paulo e o Ministério Público paulista consideram tais medidas equivalentes à eutanásia, portanto uma forma de homicídio, enquanto a OAB nacional se posiciona a favor.

Retornando à questão de transfusões de sangue e Testemunhas de Jeová, algumas lembranças podem ilustrar mais o assunto.

Na década de 1990,quando eu era conselheiro do Cremesp, foi marcado um julgamento para analisar um caso enviado pela comissão de ética médica de uma maternidade, pois uma gestante faleceu por não ser permitida a administração do sangue. A mesma era Testemunha de Jeová.

O caso envolvia algumas particularidades. Os denunciados (o equivalente a réu na justiça comum) contrataram importante e competente advogado. Duas semanas antes do julgamento, esse advogado fez distribuir a cada conselheiro um extenso material ligado ao caso e às demais questões religiosas, éticas e de autonomia, em impresso, encadernado.

O caso em si, resumidamente, era o seguinte – uma grávida, saudável, fez o pré-natal corretamente e toda sua família, incluindo a mesma, seguiam essa doutrina religiosa. Os médicos da equipe da maternidade que atendiam o caso atuaram da maneira aparentemente correta. Contudo, ao final do parto, ocorreu uma das mais graves complicações obstétricas: a atonia uterina. A musculatura do útero não se contrai, há gravíssima hemorragia que deve ser rapidamente compensada com transfusão sanguínea e o útero tem que ser retirado cirurgicamente. Portanto, deve ser feita uma histerectomia.

Valores de indenização são muito baixos

Contudo, a equipe médica não solicitou sangue, administrou expansores de volume ineficazes e a paciente faleceu. Dado importante: toda a equipe médica, obstetras e anestesistas, também eram Testemunhas de Jeová! Como ocorreu o óbito, o caso foi para a comissão de ética e chegou tempos após a julgamento. Durante o julgamento, discutiu-se muito a questão da transfusão – a paciente não apenas havia proibido a transfusão, mas também escolhera equipe médica da mesma crença.

Após quase duas horas de discussão sobre como agir, um dos conselheiros presentes, conhecido e importante professor universitário de obstetrícia, interrompeu o julgamento: segundo disse, tudo estava errado, pois teria havido um erro médico grosseiro durante o parto, que levou à atonia uterina. Dessa maneira, a questão do sangue era completamente secundária. O julgamento foi interrompido e novo processo teve que ser aberto em relação à imperícia médica, nada havendo com a questão da transfusão sanguínea. Contudo, se há alguma crítica relativamente importante a ser feita a tais postulados, naturalmente não aqueles ligados ao conhecimento técnico, é o de uma ética profissional bastante paternalista, colocando nas mãos dos médicos as decisões, por assim dizer.

A Bioética, ramo mais recente e amplo que analisa essas questões também com pessoas não ligadas à área de saúde, é bem menos paternalista; como surgiu em decorrência de decisões de quem poderia ou não fazer transplante renal em Seattle, nos EUA, na década de 1970, aliada à própria cultura da população estadunidense, passou a dar uma atenção bastante grande à autonomia do paciente. Dessa forma, caso o paciente recuse um método diagnóstico ou terapêutico, ou queira ter mais e melhores informações de sua doença, isso passa a ser um direito incontestável. Combinando-se esse fato com a característica judicante dos americanos por indenizações por dano moral, que ocorre muito mais que erros médicos reais, nasceu o consentimento informado. O paciente assina uma autorização para o procedimento indicado, autorizando o mesmo e dizendo-se estar informado e ciente das vantagens e riscos do que será feito. Apenas para lembrar? o consentimento informado já é rotina por aqui também, embora nossos tribunais sejam muito mais resistentes a condenar alguém por dano moral e, quando o fazem, os valores de indenização são muito mais baixos que os dos EUA, exatamente para prevenir a indústria do dinheiro ganho às custas de queixas como ‘o médico foi grosseiro’, que na América do Norte pode render milhares e até milhões de dólares em indenização. Isso gerou uma indústria paralela de seguro contra o alegado erro médico por lá, o que só encareceu ainda mais a já dispendiosa medicina atual, bastante tecnológica.

Autonomia deve ser respeitada

Na década de 1980, o Conselho Federal de Medicina editou resolução criada especialmente para os casos das Testemunhas de Jeová, obrigando os médicos a salvar uma vida em risco que dependesse de transfusões de sangue, mesmo contra a vontade do paciente. Vários médicos, especialmente em serviços de emergência e terapia intensiva, administram sangue e derivados nos casos que preencham os requisitos de necessidade absoluta, sem o paciente estar ciente ou mesmo enganando os mesmos.

Em minha opinião, isso está desatualizado e vai contra o princípio da autonomia. Não apenas isso: o paciente cuja crença seja a das Testemunhas de Jeová, se recebe sangue, pode ter sua vida terrena salva, mas na sua concepção religiosa estaria condenado para todo o sempre, para a eternidade. Não devemos respeitar, então, os credos religiosos? Como nos casos de terminalidade da vida, há sentenças diferentes para casos idênticos, pois não há um consenso ou súmula vinculante que abrace o problema.

Em conclusão, a autonomia deve ser respeitada, em minha opinião. Se o paciente estiver consciente e recusar o sangue, deve se respeitar sua vontade e o mesmo assinar um termo de responsabilidade informado. Caso esteja em coma, por exemplo, os responsáveis legais devem assumir essa ação.

O papel da imprensa

Neste caso brasileiro a que aparentemente apenas o Estadão deu a atenção devida, os desembargadores não decidiram por unanimidade: foi por 3 a 2 a votação que se validou a decisão da primeira instância, de levar a júri os pais da paciente e um médico que aparentemente ameaçou a equipe: homicídio doloso. O advogado dos mesmos, conceituado e competente, vai recorrer ao STJ e ao STF se necessário for, como informou.

O caso é ainda mais complexo em suas particularidades: à época dos fatos, em 1993, a paciente tinha 13 anos, era menor, estava consciente e decidiram por ela. E mais: era portadora de anemia falciforme, doença hematológica altamente dolorosa nas crises e grave, na qual, em muitos casos, além de analgésicos potentes, não há alternativa a não ser a transfusão sanguínea.

Dessa maneira, creio que o CFM deve reformar sua antiga resolução e respeitar os princípios religiosos e a autonomia do paciente, mesmo que isso implique no risco de morte do paciente. O mesmo deveria se aplicar aos códigos e sentenças legais.

Finalmente, no caso em questão, provavelmente os conselhos de medicina e a Justiça estão corretos: embora menor de idade, aos 13 anos uma pessoa já tem condições de decidir sobre sua própria vida, levando em conta sua religião e outros conceitos. De qualquer modo, o juiz singular e os magistrados têm dolorosa missão, pois podem levar à condenação pessoas que estavam querendo o melhor para a filha, embora baseados em crença, e não na realidade médica. Haverá um meio termo para isso? Difícil dizer, mas toda a imprensa deveria acompanhar, discutir em editoriais e entrevistar as pessoas que tenham ligações com tais áreas da maneira mais ampla possível. Apenas uma decisão da sociedade poderá levar a uma decisão mais próxima do justo. Que todos cumpram seu papel.

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Médico, mestre em Neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro e ex-diretor do Departamento Jurídico do Cremesp