Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Blasfêmia contra acesso à informação

Este artigo vem expor minha indignação contra a novelista Glória Perez, a Montenegro e Raman, empresa de agenciamento artístico e seus agenciados, que fizeram tudo para sabotar um trabalho biográfico sobre a atriz e bailarina Daniella Perez (1970-1992), cruelmente assassinada pelo ator Guilherme de Pádua e sua mulher Paula Thomaz.

Considerava escrever a biografia de Daniella Perez a tarefa mais audaciosa de minha vida. Ora, tal tarefa consistia em abordar a vida e carreira de uma menina-mulher, meiga, apaixonada pelo marido e que sempre estava disposta a ouvir as pessoas. Pelo seu jeito de ser, já estava sendo considerada a nova namoradinha do Brasil, tinha uma carreira em linha ascendente e teve sua vida ceifada precocemente aos 22 anos.

Na minha humilde e ingênua opinião, Daniella Perez deveria receber homenagem à altura do seu talento, seja como bailarina, seja como atriz. Nos anos 2000, só há a profusão dos modelos sarados e BBBs, celebridades descartáveis que buscam aquilo que o artista plástico Andy Warhol previa: In the future everyone will be famous for fifteen minutes (No futuro todos terão quinze minutos de fama).

Em outras palavras, queria mostrar o lado humano de Daniella, uma pessoa que se dedicava de corpo e alma aos seus projetos artísticos, principalmente a dança, de como era acolhedora com os amigos e que tinha luz e méritos próprios para ascender ao estrelato.

Assessoria de imprensa, a barreira

Fiz uma pesquisa preliminar na internet sobre Daniella Perez e através dela é que estava tentando localizar as fontes. Lancei mão de técnicas de pesquisa histórica e de apuração jornalística para fazer a pesquisa, que geraria o texto biográfico.

Soube por uma das inúmeras comunidades no Orkut em homenagem à finada atriz que a sua mãe, a novelista Glória Perez, está escrevendo um livro esclarecendo equívocos quanto à morte de sua filha. Minha linha de trabalho era outra, visava a falar da vida e obra da Dani. O livro era para homenageá-la, pois onde quer que ela esteja, ficaria muito feliz com este trabalho, mesmo que em vida Daniella não se deixasse levar apenas pelos elogios. Diga-se de passagem, fui elogiado pela iniciativa pelos membros da comunidade ‘Eu adorava a Daniella Perez’ pela iniciativa.

Finalizada a pesquisa preliminar que fiz na internet, passei a procurar os atores que contracenaram com Daniella nas novelas globais Barriga de Aluguel (1990), de Glória Perez, O dono do mundo (1991), de Gilberto Braga, e De corpo e alma (1992), de Glória Perez. Mas teria que passar pela assessoria de imprensa dos mesmos e a Montenegro e Raman, que além de fazer a assessoria de imprensa, cuida da carreira de Betty Faria, Cristiana Oliveira, Carlinhos de Jesus, Paulo Cesar Grande e Nathália Timberg (atores que participaram com Daniella nas supracitadas telenovelas).

Atos atentórios

O requerimento foi feito, chegou a ser perguntado quanto tempo de entrevista e que atores de seu casting eu gostaria de entrevistar. Deixei claro o tempo necessário e quais atores queria ouvir. Posteriormente, recebi um e-mail de Talita Vaccaro, assistente de imprensa, dizendo:

‘A Glória Perez já autorizou e está sabendo do livro? Nossos atores só vão dar essa entrevista mediante a um pedido dela.’

Respondi que se tratava de uma biografia não-autorizada. Então Talita responde assim:

‘Infelizmente, sem a autorização da Glória para essa biografia, nós preferimos que os nossos atores não dêem o depoimento.’

Isso é um absurdo, para não chamar de blasfêmia à liberdade de expressão, de informação e de imprensa!

Onde já se viu que, para fazer uma entrevista para uma biografia não-autorizada, é necessária a autorização dos parentes? Ainda mais quando se trata de informações de caráter profissional, que é a conduta profissional de Daniella Perez.

Como operadoras (quer dizer, aspones) da comunicação podem servir-se de atos atentatórios à liberdade de expressão e de imprensa? Só porque a digníssima Glória Maria Ferrante Perez é amiga de Marcos Montenegro, dono desta agência.

Um currículo considerável

A Constituição garante os direitos de liberdade de expressão, de informação e imprensa:

V – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

Então, enviei um e-mail para Glória Perez solicitando um depoimento e material iconográfico (fotografias) para o trabalho. Respondeu dizendo assim:

‘Dany não chegou a ter curriculum para justificar uma biografia profissional e não quero ninguém fantasiando uma vida pessoal da qual não tem o menor conhecimento. Marcos Montenegro, que é meu amigo pessoal, me repassou seu mail, invocando liberdade de expressão. Vale lembrar que essa liberdade não é o direito de expressar qualquer coisa!’

Em primeiro lugar, não estava fantasiando vida pessoal, mas desenvolvia uma biografia de uma artista com uma carreira em ascensão interrompida por um crime bárbaro. Relatava a trajetória de uma atriz que poderia ter sido considerada como uma das melhores de sua geração.

Mesmo em sua curta trajetória como atriz, ela tinha, sim, um currículo considerável, dado o destaque e aceitação do público e da crítica que teve nas novelas O dono do mundo e De corpo e alma.

‘História não é patrimônio’

Glória Perez é formada em História pela UFRJ, é historiadora e, contraditoriamente, quer impedir que as pessoas conheçam a história da Dani por outras versões diversas da sua. A história não tem uma única interpretação. Em uma democracia, não há lugar para pensamento único.

Quanto ao e-mail de Marcos Montenegro, quando invoquei liberdade de expressão e de imprensa, referi-me ao ato tirânico das assessoras de imprensa de barrarem as entrevistas com seus assessorados com a alegação de que eles só dariam declarações mediante autorização da novelista. As perguntas aos atores eram referentes à atuação e conduta profissional de Daniella, não tinha nada de vida pessoal.

Glória Perez pensa que a história de sua filha é patrimônio particular. Vou usar uma frase de Paulo Coelho, de um artigo disponível no site do Ministério da Cultura, relativa à proibição do livro Roberto Carlos Em Detalhes, de Paulo Cesar de Araujo para provar o contrário:

‘Roberto Carlos me intriga muito quando diz que a sua história é seu patrimônio. Mas não é: a história dele é feita a milhões de mãos.’

Impossibilidade de coleta de depoimentos

Assim como o rei, a vida de Daniella foi escrita por todos nós, telespectadores, fãs e amigos, que nos alegrávamos quando a víamos dançar e atuar.

É uma colisão de direitos: a liberdade de expressão versus o direito à privacidade. É uma luta de Davi contra Golias. O jornalista e escritor Lira Neto, no mesmo artigo que opinou o parceiro de Raul Seixas em tantas músicas, discorre sobre as dificuldades do exercício pleno da historiografia:

‘Provavelmente criou-se uma jurisprudência perigosa, contra o gênero biografia e contra o próprio exercício da historiografia. Se a gente depender do biografado e dos herdeiros para escrever sobre alguém, é simplesmente a falência do gênero.’

Há pessoas que têm aversão a biografias autorizadas por elas serem chapas-brancas, ou seja, terem aquilo que convém ao biografado ou seus herdeiros. É o que compartilha o historiador José Murilo de Carvalho:

‘Não tem valor: a biografia autorizada é uma fraude porque está dizendo que o biógrafo está escrevendo aquilo que o biografado gostaria que ele escrevesse.’

Imagine se tivesse que fazer a produção do livro segundo os ditames de Glória Perez, inserindo aquilo que lhe fosse conveniente. Aposto que o livro seria um eminente fracasso de vendas.

Infelizmente, abandonei o projeto em virtude da impossibilidade de fazer a coleta dos depoimentos das pessoas que fizeram parte da vida de Daniella, pelo egoísmo dos artistas que se escondem em assessores de imprensa e principalmente, pelo temor de que Glória Perez usasse seu poder para inviabilizar a pesquisa da biografia.

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Estudante de História da UFES, Vitória, ES