Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Blasfêmia que ricocheteia

A coluna de André Petry na edição 1.943 de Veja, 15/2/06, analisa as charges dinamarquesas explosivas e tem tudo para agradar ao grande público não disposto a cavar além da epiderme da questão islamismo e liberdade de imprensa.

O artigo contém um grande sofisma: tenta aplicar os mesmos princípios iluministas sobre ambientes vivendo realidades a séculos de distância uma da outra. Não é razoável abstrair do julgamento das reações dos atuais queimadores de bandeiras européias a fase da história por que passam seus países. Para uma comparação justa seria preciso supor caricaturas debochadas impressas no século 12 na Europa medieval, numa sociedade tecida em torno da Igreja, no Direito Canônico como Carta Magna, nas guerras sendo arbitradas pelo papa etc.

Que o argumento não soe exagero, pois a realidade das sociedades muçulmanas conserva em pleno século 21 normas sociais estranhíssimas quando vistas com nossas lentes de povos que estão no terceiro século de independência tanto do altar como do trono. E por mais absurdas que nos pareçam certas coisas muitas delas ainda regulam o cotidiano desse um bilhão de pessoas. Algumas odiosas e obscurantistas, como mulher cidadão de segunda categoria e a teocracia mandando no governo civil, mas não será pela provocação que serão superadas.

Há que se levar em conta contextos muito diferentes e ainda um forte ressurgimento do integrismo sob a égide do Alcorão. Começa do cotidiano na maioria das regiões que reverenciam Alá, onde o fim de semana cai na quinta e na sexta-feira e nos escritórios há quem estenda um tapetinho para dizer umas rezas três vezes ao dia. Na Arábia Saudita, berço do profeta, uma polícia da fé (sic) zela pelo pudor feminino, elas não saem à rua sem cobrir com véu o rosto e não podem dirigir carro.

A maioria dos países muçulmanos é governada por regimes autoritários. Estão aí a Líbia, a Síria, o Iraque e a Arábia Saudita que não me deixam mentir. A postura da imprensa nesses países nada tem a ver com seus pares do lado de cá, sistematicamente a denunciar irregularidades. E a estrela do jornalismo televisivo, al-Jazira, sugere grande independência editorial até que nos lembremos que ela não contesta governos árabes.

Flagrantes contradições

O Estado nos países muçulmanos conseguiu forjar um nacionalismo à flor da pele à semelhança de uma torcida esportiva. E passou isso à população, no que foi ajudado pelas truculências sionistas das últimas décadas.

A religião muçulmana admite dois planos distintos, o moral e o cotidiano, sem misturá-los, sem que um contagie o outro. Um exemplo é a condenação da instituição juros em vigor entre algumas das maiores reservas de dólares do planeta – aplicadas em títulos de bancos, naturalmente. A questão de costumes, que tanto afasta rapazes da moral cristã, não lhes fecha as portas das mesquitas onde vão cumprir ritos.

Enormes e flagrantes contradições no tecido profundo das sociedades muçulmanas tenderão a fazer cair a máscara da simplória luta bem x mal. É nesses termos maniqueístas que a coisa tem sido colocada. Naturalmente com 90% das reservas de petróleo em mãos do Oriente Médio parte delas dilatarão o ego dessa gente. Mas evitemos grosserias e provocações.

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Diretor de ONG, Salvador