Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Boa pauta para o cinema nacional

A união entre jornalismo e cinema parece sempre bem-sucedida. Desnecessário falar de produções clássicas como Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA/1941), que imortalizou o nome de Orson Welles, que produziu, dirigiu e protagonizou o filme baseado na vida do magnata e empresário de comunicações americano William Randolph Hearst, e A montanha dos sete abutres‘ (Ace in the Hole, EUA/1951), produzido e dirigido por Billy Wilder e estrelado por Kirk Douglas no papel do ambicioso jornalista Charles Tatum, que transforma pequeno incidente em mina de carvão no Novo México (EUA) numa chance de ganhar dinheiro e prestígio.

No fim dos anos 90, filmes como O informante (The Insider, EUA/1999), de Michael Mann, e O quarto poder (Mad City, EUA, 1997), de Costa-Gavras, não deixam dúvidas sobre isto. O primeiro, baseado numa história real ocorrida em 1994 e com irrepreensíveis atuações de Al Pacino e Russell Crowe, conta o drama do jornalista Lowell Bergman (Pacino) e do ex-executivo da indústria de tabaco Jeff Wigand (Crowe) ao se verem envolvidos em conflitos morais e éticos ao tentar denunciar pela rede CBS que a empresa de cigarros está colocando substâncias cancerígenas em seus produtos.

O quarto poder, com o também sempre bom Dustin Hoffman e John Travolta, leva o telespectador até o museu de uma cidade do interior do EUA, Madeline, para mostrar como, para alguns profissionais da imprensa, um dia normal e sem novidades pode transformar-se num redemoinho quando um repórter – Max Brackett (Hoffman) – resolve usar um incidente na vida de um homem comum – Sam Baily (Travolta) – em benefício de sua carreira.

Neste início de 2006 o cinema americano nos brinda com outras duas boas pérolas da união jornalismo e cinema: Capote (Canadá-EUA/2005), de Bennet Miller, e Boa noite, boa sorte (Good Night, Good Luck, EUA-Japão-França-Inglaterra/2005), de George Clooney. Ambos inscrevem-se numa leva de filmes que estão sendo produzidos em Hollywood e que sutilmente abordam uma marca constante entre os americanos nestes tempos pós-11 de setembro e ‘caça ao terror’. Há, nos EUA e no resto do mundo, uma questão no ar: será que estamos certos? Estamos, de fato, tornando o mundo melhor?

Proezas e conflitos

Capote e a excelente interpretação de Philip Seymour Hoffman permitem aos jornalistas colocar na balança o que é mais importante: seu compromisso consigo e com sua carreira ou com o interesse público? Boa noite, boa sorte, uma prova da qualidade do trabalho de Clooney, vai na mesma linha, apresentando os embates da CBS contra o macartismo tendo à frente o jornalista Edward R. Murrow, reforçado por uma trilha sonora de alta qualidade.

A verdade é que tanto Capote quanto Boa noite, ao trazerem à tona jornalistas, políticos e empresários, ressuscitam fantasmas e histórias parecidas com os de Kane (Cidadão) e Tatum (Montanha), também trazidos à baila pelos personagens Brackett e Baily (Quarto) e Bergman e Wigand (Informante). É como se as discussões sobre ética e dever da imprensa nunca tivessem abandonado o espaço privilegiado dos debates americanos sobre a vida em sociedade.

Talvez se esse tipo de produção estrangeira inspirasse a levar às telas do cinema brasileiro as proezas e os conflitos do jornalismo nacional, a nossa sociedade se tornasse mais afinada e informada sobre o papel do jornalismo e, por outro lado, fizesse os jornalistas pensarem e ficarem em alertas sobre seus compromissos com o público. Ao longo desses séculos de jornalismo, temos muita coisa ruim a ser denunciada, mas ao mesmo tempo muita coisa boa a ser mostrada.

Alguém se habilita?

Obviamente, existem algumas produções que podem ser aqui ser mencionadas. Vlado – 30 anos depois (Brasil, 2005), de João Batista de Andrade, é um exemplo. O filme tem, sem dúvida, um valor inestimável e no que pretende ser – documentário – funciona muito bem. Mas é o povo, a sociedade brasileira que precisa se ver na tela grande, interagida com o jornalismo. Uma experiência neste sentido é o premiado Cidade de Deus (Brasil/2002), de Fernando Meirelles, que conta a história do jovem Buscapé (Alexandre Rodrigues), que encontra no fotojornalismo uma forma de sobreviver e denunciar as mazelas da violenta vida numa favela carioca. No entanto, os exemplos de roteiros baseados em fatos ainda são raros e, por isso, a força do debate sobre o jornalismo nacional ainda é pouco expressiva.

Por outro lado, a literatura nacional parece que já há algum tempo se deu conta do espaço e da possibilidade dessa discussão. Só para citar alguns exemplos, Minha razão de viver (Ed. Record, 1987), de Samuel Weiner, que conta a trajetória do jornal Última Hora e suas relações com o governo Vargas na primeira metade do século 29 e, mais recentemente, 10 reportagens que abalaram a ditadura (Ed. Record, 2005), organizado por Fernando Molica e com reportagens de jornalistas como Luiz Cláudio Cunha e Ricardo Kotscho, produzidas nos anos militares, mostra a corajosa luta travada pelo jornalismo investigativo contra a ditadura. O livro Dossiê Herzog: Prisão, tortura e morte no Brasil, de Fernando Pacheco Jordão (Ed. Global, 2005), lançado inicialmente em 1979, pode ser uma interessante inspiração para adaptação de um roteiro sobre a vida e a luta do jornalista Vladimir Herzog, este iugoslavo naturalizado brasileiro morto covardemente aos 38 anos pela ditadura militar em 1975.

A literatura nacional tem nos contado muitas histórias sobre jornalistas e jornalismo. E o cinema brasileiro, a exemplo do que vem fazendo o cinema americano, precisa cantá-las também, estimulando um debate sobre a imprensa local, seus nomes, seus acertos e seus erros. Neste último caso, esclarecer na telona o desleixo da imprensa no caso Escola Base poderia ser (entre outros) um bom começo. Alguém se habilita?

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Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, especialista em Jornalismo Político e Econômico e professor universitário em São Paulo; com trabalhos profissionais na área do terceiro setor, dedica-se ao estudo das relações entre jornalismo e cidadania