Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Boaventura: ‘FSM privilegiará a comunicação alternativa’

As rádios comunitárias e os meios alternativos são a fórmula para derrotar o cerco dos meios de comunicação corporativos, disse o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Nesta entrevista, anuncia também uma mudança de pensamento: a crise impõe ao Fórum a definição por uma posição política.

***

Você continua mantendo as suas idéias sobre a natureza do Fórum Social Mundial, em relação ao contexto da crise global do capitalismo que vivemos?

Boaventura de Sousa Santos – É uma pergunta muito importante neste momento, quando estamos a caminho do FSM em Belém. Porque penso que as mudanças dos últimos meses tenham criado uma situação nova, diria quase crucial para ao Fórum Social Mundial. Esta condição surge do seguinte: como você sabe, no FSM há um debate, desde seu início, sobre se ele deve ser um espaço aberto a todas as tendências progressistas, que lutam contra a globalização neoliberal, um espaço de encontro e nada mais, ou se o contrário, quando deveria possuir um papel mais forte de intervenção, de apresentação de propostas e de organização de ações políticas globais, de intervenção para a mudança.

De alguma maneira esta realidade já obriga algumas mudanças de pensamento. Defendi, durante muito tempo, a idéia do espaço aberto, por que me parece importante manter um espaço onde as pessoas se encontrem sem programas pré-definidos, mas de dois anos para cá, passei a assumir uma posição diferente. Minha idéia é que o FSM deve seguir como um espaço aberto, mas devemos identificar temas onde exista consenso, para que o Fórum apresente posições políticas e, portanto, um programa.

Você pensa em quais temas?

B.S.S. – Sustento que quatro ou cinco questões internacionais deveriam ter um papel mais forte, porque de outra forma, meu receio é que o FSM seja cada vez mais irrelevante para as lutas sociais que se aproximam.

O FSM deveria possuir uma proposta de reformulação das Nações Unidas. É um processo que vem sendo discutido há muito tempo, inclusive no Fórum, mas não existe uma posição comum para apresentar.

Em segundo lugar, a crise financeira, que nos últimos meses tem criado uma situação nova, porque no FSM havíamos sempre criticado a globalização neoliberal e toda a predominância do capital financeiro, que tem levado à ruína tantos países. E havíamos dito uma coisa que é muito importante: que a crise financeira, que explodiu agora nos Estados Unidos e Europa, é uma crise que os países chamados do Terceiro Mundo já sofrem há 30 anos, e todos estes países haviam proposto para seus problemas, soluções semelhantes às que Estados Unidos e Europa estão tomando: nacionalizando bancos, tudo isso.

Na crise do sul global, ninguém pensou no que poderia ser mudado. A ortodoxia neoliberal dominava totalmente. Agora que a crise está nos Estados Unidos e na Europa, no coração do sistema capitalista mundial, estão adotando as medidas que estes mesmos países centrais rejeitaram terminantemente, por meio do Branco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, aos países do sul e aí surgiram as crises da Ásia, Argentina, Brasil e Rússia. Então, minha proposta é que o FSM assuma uma visível posição internacional sobre como solucionar a crise.

O FSM deveria exigir a abolição do FMI, do Banco Mundial, ou reformas radicais. Essas posições têm sido discutidas, mas ainda não há um consenso. Por que não transformamos isso em uma posição política?

E temos que lembrar da Palestina.

B.S.S. – Sim, em terceiro lugar, a crise da Palestina. Esta agressão, que é gerada pela ocupação israelense, mais brutal que antes, e que neste momento se desenvolve com crimes de guerra e contra a humanidade, que se perpetuam porque existe a certeza da impunidade total. Penso que o FSM deveria ter uma posição muito clara, internacionalmente visível, sobre a solução do caso da Palestina. Temos lutado pela paz, o Fórum não diretamente, mas a Assembléia dos Movimentos Sociais convocou um protesto mundial contra a invasão do Iraque e penso que desta vez não devemos nos limitar às mobilizações de protesto. A questão da Palestina envenenará todas as relações internacionais.

Você acredita que este ataque foi lançado para determinar algo antes que Barack Obama assumisse a presidência dos Estados Unidos?

B.S.S. – Sim, esta agressão foi uma provocação premeditada do Estado de Israel, que os veículos de comunicação internacionais nunca mencionam. A primeira violação do cessar-fogo (entre o governo de Gaza e Israel) foi no início de novembro, por um bombardeio israelense. Em resposta, o Hamas (organização governante em Gaza) solicitou uma renegociação de trégua, que Israel rejeitou. Então tudo começou.

Israel persegue três objetivos diretos: um, a política interna, em que a coalizão de centro-direita que governa o país está em risco e quer recuperar sua liderança eleitoral; dois, o exército, que quer esquecer a má imagem que a derrota para a organização Hezbollah, quando invadiu o Líbano em 2006; e três, criar um fato consumado antes que Obama seja proclamado.

São estes três fatores os que temos conduzido a esta guerra de agressão que não tem nada haver com Gaza. Existe um extermínio. Há meses, o vice-ministro da Defesa de Israel (Matan Vilnai) ameaçou a população de Gaza com a palavra Sho´há, que em hebraico significa holocausto. Isto foi anunciado faz alguns meses. É horrível, porque não se dão conta de que o povo foi vítima de uma Sho´há na Europa, e a história demonstra que as ‘soluções finais’ voltam sempre contra aqueles que a tentaram.

Existe saída para isso?

B.S.S. – Muitas coisas graves estão acontecendo. Pessoas que sempre defenderam a existência do Estado de Israel se perguntam hoje sobre essas condições; repito, nestas condições, o Estado de Israel mantém o direito de existir. É notável que quando se lêem os textos dos fundadores de Israel, como Ben Gurion e Golda Meir, temos muito claro que eles entendiam que seu Estado seria uma ocupação que encontraria sempre a resistência de outros povos, por isso nunca haveria paz.

A solução para os dois Estados foi uma hipocrisia já eliminada pelas ações, por tanto a colônia judia na Cisjordânia se tornou impossível. Seria grave se o FSM, reunido no contexto da crise mundial não tomasse uma posição do Conselho Internacional ou a Assembléia do FSM. Meu receio é que as pessoas saiam com a impressão de que o Fórum não sirva para nada. Para isso temos proposto votações.

Em qual contexto organizacional se dariam as votações?

B.S.S. – Como fazem os jornais internacionais, por meios eletrônicos. O Sunday Times (semanário britânico) perguntou pela primeira vez aos seus leitores se estariam a favor de um embargo a Israel, como foi realizado em tempos de apartheid na África do Sul.

Mas no ambiente do Fórum, as votações seriam complicadas.

B.S.S. – Poderiam ser realizadas todas as noites, num processo de votação eletrônica. É muito fácil de fazer. Fui informado de que não representamos o mundo, e claro que não o representamos, mas somos em 100 mil pessoas. O Conselho Internacional nunca mencionou em aceitar isso, nem se quer o considerou, mas está publicado desde 2003.

O Fórum tem perdido espaços nos meios de comunicação tradicionais. Isso foi devido a censura, falta de profissionalismo do grupo de comunicação, ou sensivelmente o Fórum vem perdendo força?

B.S.S. – Esta é uma pergunta importante, pelo poder da mídia no contexto internacional. Os meios mainstream são um importante instrumento do capitalismo mundial, da oposição ás políticas progressistas. Neste momento em toda a América Latina, os meios de comunicação se opõem ao processo de mudança. A ausência dos meios no Fórum não tem que ver com debilidades. Num momento era uma novidades para os meios corporativos, por que nascemos como uma alternativa ao Fórum Econômico de Davos, um espelho contrário, e isso criou uma curiosidade que os levaram aos primeiros fóruns. No momento em que se deram conta de que o Fórum tem uma vocação categórica, deixaram de se interessar.

Para nosso caminho, o mais importante são os meios alternativos, os veículos livres. Desta vez se realizará em Belém um fórum mundial de meios livres. Trabalho muito na Bolívia e Equador, e posso afirmar que as rádios comunitárias, por exemplo, a imprensa alternativa, são os meios possíveis de levar conhecimento progressista à população. Deveríamos investir ao extremo. A estratégia comunicadional do Fórum nem sempre tem sido forte, mas agora penso que o FSM está consciente de que se não damos todo o mérito aos meios alternativos, aos veículos livre, que lutam para levar ás pessoas outra informação, não iremos longe.

******

Do IPS/TerraViva