Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Bolsonaro e Feliciano não são racistas

Que me perdoem os movimentos negros, os libertários e revolucionários. Mas os deputados Jair Bolsonaro e Marco Feliciano não são racistas. Na verdade, eles precisariam melhorar muito para isso. Racista é alguém que recebe em sua casa o coleguinha negro da filha, mas passou a vida toda dizendo para a menina que é preciso ‘clarear a família’. É aquele que nega a discriminação racial, acha as cotas uma aberração jurídica e quando é perguntado sobre a sua cor, que culturalmente no Brasil define a identidade e a origem do vivente, fica sem saber como classificar aquele tom ‘de burro quando foge’ e não sabe se é preto, mulato, marrom-bombom, mameluco, indígena ou japonês. E se convence que é branco.

O racista médio, naturalizado pela sociedade brasileira, é neto ou bisneto de ‘gente de cor’, assume que tem um ‘pezinho na senzala’, mas acha que ‘macumba é coisa de preto’ e que um negro correndo na rua, necessariamente, é suspeito. Em resumo, é um alienado, homogenizado pelas políticas eugenistas que assolam o Brasil há mais de 300 anos.

Não. Com certeza, os deputados Bolsonaro e Marco Feliciano não são racistas. Eles estão num patamar em que o adjetivo foi largamente superado. O racista brasileiro, aquele que é e não tem ideia do que isso seja, não teria o requinte intelectual de recusar-se a ser operado por um médico cotista, como disse Jair Bolsonaro em entrevista publicada por vários jornais do país. Imagine a cena: o cara chega no hospital público, entre a vida e a morte, todo estropiado, infartado, mas se recusa a ser operado pelo médico. Seja ele preto ou índio.

Discurso atualizado

Tenho plena convicção de que mesmo um racista empedernido, forjado num país em que a discriminação racial é travestida por preconceito social e enxerga a violência contra pretos pobres como uma forma enérgica de retirar da sociedade aqueles que por hábito são ladrões, não teria o requinte teológico de afirmar que as mazelas do continente africano – e de todos os seus descendentes – deriva de uma maldição lançada por Noé contra seu neto. Essa afirmação do pastor (?) Marco Feliciano, hoje deputado federal pelo PSC, também publicada em dezenas de veículos de comunicação do Brasil, revela a face obscura de algo que é, ao mesmo tempo, anterior e posterior ao racismo.

Observem que nas frases dos nossos nobres parlamentares são negadas quaisquer possibilidades de ascensão dos negros (já que um médico ou um piloto de avião que acesse o ensino universitário através de cotas, não é digno ou capaz de servir ao deputado Bolsonaro) e que esta condição de desigualdade entre o continente africano e o resto do mundo não é o resultado da política de exploração e expropriação da África pela Europa, mas centrada em uma explicação metafísica: a maldição que atravessou os séculos e que, por sua carga e peso, é a característica primeira de seu povo. Os recursos podem ser diferentes, mas a base do discurso e o poder de convencimento que ele tem só foram, digamos, atualizados. As comunidades judaicas, à custa de milhões de vidas, precisaram entender bem como se dá esse processo.

A história se repete

Bolsonaro e Feliciano atingiram um patamar no qual só podem ser classificados como ideólogos da hierarquização social e política das pessoas. Em suas mentes pequenas e deformadas, eles se consideram detentores de um poder branco, puro, algo angelical. Eles estão alinhados com uma vasta lista de políticos, professores, pensadores, jornalistas e artistas que, completamente cônscios de seus papeis de formadores de opinião e consciências, perpetuam e propagam as mesmas linhas teóricas da ideologia que dizimou milhares de vidas humanas há menos de um século. Em bom português, os deputados Bolsonaro e Feliciano são os nossos neonazistas tupiniquins.

Será que o próximo passo dessa dupla é a fundação de uma frente político-religiosa para manter a pureza da sociedade e a castidade da família, livrando o país de pretos, homossexuais, pais de santo e amaldiçoados (o que, na verdade, são a mesma coisa)? Será que Bolsonaro e Feliciano representam legitimamente uma parcela da população que verdadeiramente acredita nessas afirmações? Será que os 500 anos de negação do racismo estrutural que esculpe mentes e corações brasileiros são agora solo fértil para que presenciemos bestialidades como essas? Se este texto faz você lembrar do início da ideologia nazista na Alemanha e, logo em seguida, Europa, não é mera coincidência. É a história que, seguindo seu curso natural, se repete.

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Jornalista, especialista em Holocausto pelo Museu Yad-Vashem (Jerusalém) e pós-graduanda em Relações Etnicorraciais no Cefet/RJ