‘Um mundo novo tem necessidade de uma nova política’, eis a frase muito citada de Alexis de Tocqueville, no seu clássico Democracia na América. É que, entendendo política como liberdade de agir e pensar, ele aspirava à fundação de um mundo compatível com esta premissa. Mas quando hoje se fala de ‘mundo novo’ por efeito do progresso acelerado da ciência e das tecnologias, praticamente nada se ouve sobre aspirações dessa ordem, já que o ideário político da liberdade parece ter dado lugar à igualdade proporcionada pelo mercado. Talvez por isto não se formule com a angústia típica das urgências históricas a questão da necessidade de um novo jornalismo neste mundo novo.
‘Filosofismos’ fora de lugar e de hora? Não mesmo, pois a questão como que se impõe ao pensamento diante do debate crescente na imprensa brasileira sobre a proposta de criação de um Conselho Federal de Jornalismo. Ainda que os proponentes (Fenaj, sindicatos) possam abrir mão do projeto ou que o governo federal recue em seu açodamento (como, aliás, já deu mostras claras de que este é o caso), não será acertado deixar morrer a discussão, em que se entrevêem questões muito pertinentes à crise atual do jornalismo.
Pressa industrial
Na verdade, o pensamento acomoda-se melhor, às vezes, na inatualidade dos problemas, beneficiando-se assim da ausência de constrangimento temporal e da precariedade das soluções apressadas. Consta que a idéia já teria sido pensada e discutida em foros competentes (tendo mesmo permanecido dois anos no site de um sindicato de jornalistas), mas o fato é que apenas a notícia do envio do projeto à instância federal foi capaz de mobilizar as atenções de quem de direito. O próprio desconhecimento geral do assunto pode ser tomado como sintoma de uma certa indiferença da coletividade dos jornalistas ao que seus órgãos de classe forjicam para além das questões salariais.
Cabem, assim, algumas ponderações de princípio. A primeira é: um novo jornalismo poderia realmente precisar de algo como um Conselho capaz de servir de farol no breu (metáfora tanto de escuridão quanto de atoleiro anti-ecológico) dos descaminhos ético-políticos da imprensa? Talvez valha a pena refletir um pouco sobre um episódio da história da literatura brasileira, o do movimento modernista, comentado por Mário de Andrade:
‘Quem teve a idéia da Semana de Arte Moderna? Por mim não sei quem foi, nunca soube, só posso garantir que não fui eu. O movimento se alastrando aos poucos, já se tornara uma espécie de escândalo público permanente (…) O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional’. (Aspectos da Literatura Brasileira)
É evidente que um exemplo da história artística do país não pode ser posto como paradigma de uma inovação no jornalismo, atividade industrial cada vez mais orientada pelos interesses de mercado, ao lado das eternas pressões e contrapressões do jogo político. Mas, por outro lado, não é uma ‘indústria’ qualquer, por se ancorar em princípios ético-políticos que remontam à proclamação originária dos direitos universais da cidadania.
A realidade brasileira modificada pelo movimento modernista implicava, segundo Mário de Andrade, atualização da inteligência artística e estabilização de uma consciência criadora. Da mesma maneira, a realidade industrial ou puramente midiática do jornalismo demanda, por pressão da especificidade da atividade informativa na cultura ocidental –– em que é preciso distinguir entre o saber jornalístico e a empresa de mídia, instâncias muitas vezes contraditórias –uma atualização dos modos de fazer e a estabilização de uma consciência ética.
Por isto, é possível reter da explicação de Mário de Andrade as idéias de um movimento que se alastra, de um escândalo público permanente e de uma ruptura. São fenômenos que presenciamos repetidamente não apenas no jornalismo brasileiro, mas principalmente no internacional. Os grandes pilares da imprensa americana, por exemplo, vêm sendo sistematicamente sacudidos por tremores e temores de natureza técnica e ética. E no meio da própria atividade profissional, mostra-se, embora ainda não se ‘alastre’, um movimento auto-reflexivo, que se traduz na instituição dos ombudsmans ou nas repetidas retratações por parte de repórteres ou editores; revela-se a permanência do escândalo da inadequação da pressa industrial ao tratamento dessa matéria delicada chamada informação pública; evidencia-se a necessidade de uma ruptura institucional.
Liberdade como pressuposto
O grande problema, porém, é que inovações características da vida institucional não se encaixam bem na vida organizacional ou empresarial, cujo negócio são justamente os negócios. Em termos mais francos, uma corporação ou empresa preocupa-se primeiramente em evitar o vermelho em seu balanço contábil e depois com questões financeiramente secundárias, como erro e verdade, justo e injusto, ético e aético. A palavra ‘finanças’ aparece aqui no lugar de ‘economia’, porque hoje em dia se sabe o quanto a instância econômica depende de variáveis simbólicas, em que se incluem a diversidade cultural e as considerações de natureza ética.
Mas a realidade mesmo é que, assim como no passado se podiam conceber práticas de jornalismo fora do âmbito comercial da imprensa (o ativismo dos tribunos, dos panfletários etc.), hoje se pensa no potencial de ambivalência do jornalismo (informação cívica, comunicação comunitária, jornalismo investigativo imparcial, livre crítica) frente aos ditames empresariais da mídia.
É no espaço intermediário cavado por essa ambivalência que se abrem as brechas para o aparecimento de organismos do tipo ‘conselho de jornalismo’, destinados a atualizar a velha atividade. O Conselho poderia ser pretexto e lugar para uma discussão do ‘neomodernismo’ jornalístico, assim como os salões da avenida Higienópolis e da rua Duque de Caxias, em São Paulo, foram os lugares de convergência para a aristocracia de espírito que presidiu à Semana de Arte Moderna.
Seria, porém, necessário criar para isso uma autarquia? Nos tempos de Getúlio Vargas, cujo cinqüentenário de morte suscita agora homenagens devidas, as autarquias foram oportunas e criativas: do café, do açúcar etc. Mas, convenhamos, o Estado já não é o mesmo, a classe dirigente já perdeu a noção do que possa ser projeto nacional. O fato de ser autarquia não salva a OAB, por exemplo, de sua tibieza institucional. O que antes parecia moderno pode não passar hoje de franco anacronismo.
Nenhuma lei, autarquia ou regulamento garante a liberdade, que se afirma sempre no imprevisível. Liberdade é o pressuposto do jornalismo. Acho bom sentarmo-nos para pensar um pouco mais.
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Jornalista, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro