Um diálogo com o jornalista e professor Eugênio Bucci sobre a cobertura da tragédia.
– Desde a antiguidade, tragédias provocam, além de horror e temor, fascínio. Tempestades são divindades. Acidentes são observados com avidez. Um corpo lançado da janela na calçada entretém a multidão. A tsunami mata 200 mil pessoas mas o avanço do mar é mesmerizante. O visual de guerra é objeto de culto. Você vê isto também nas imagens que vêm do Haiti?
– Eu vejo isso em todo lugar, em toda foto na banca, na internet, na TV. Até mesmo o deputado com dinheiro na meia se converte em vulcão mesmerizante (superpalavra, essa). O perverso, o mórbido, o familiar que é ao mesmo tempo estranho e repulsivo (ominoso), aparece a toda hora, e não é isso que diferencia uma cobertura da outra: neste aspecto, todas as coberturas são iguais, ainda que a mais recente sempre nos assombre com a impressão de que exagerou mais na dose.
– Que exagero, ainda que reiterativo dessa tendência humana, há na atual cobertura?
– A quantidade. O terremoto do Haiti foi um terremoto na paginação dos jornais e telejornais. Não condeno nem critico essa overdose de imagens chocantes. As dezenas de milhares de mortos, o horror das cenas, justificam-na. Há o recurso espetacular em todas as coberturas, e uma de suas características estruturais é essa, a dose sempre mais forte. Por isso a sensação de não saber onde iremos parar. Mas no caso da cobertura do Haiti, além do espetáculo, há um vetor solidário que prevalece. Não solidário no sentido de caridoso, mas de vibrar junto, transmitindo ao público o que é a carga do drama humano vivido pelas pessoas que lá estão. Pense bem: a solidariedade, desta vez, atravessa as fronteiras nacionais e acolhe os haitianos como brasileiros. Em parte porque há brasileiros que trabalham lá, militares morreram, Zilda Arns morreu, um pouco do Brasil foi ceifado pela tragédia. Porém, muito mais que isso, há uma inclusão do Haiti no imaginário pátrio. Caetano foi profético: o Haiti é mesmo aqui. E a solidariedade que sentimos em relação aos haitianos não é diferente da que sentimos em relação às vítimas de tragédias brasileiras. Há sensacionalismo, mas há profissionalismo, bravura, e não falamos de bravura em missão de guerra, mas em missão de paz. Em tanto sofrimento, há um dado de beleza. E é essa a matriz daquilo que você falou: o retrato da desgraça nos agride e inebria, mas estamos também inebriados pela possibilidade de que algo pode ser feito em prol dos haitianos. É sintomático que, aqui e ali, estamos discutindo política, história, sobre as soluções necessárias para que o país ultrapasse o seu estado atual de vulnerabilidade, de desproteção, de desamparo total. E isso é um dado positivo.
Solidariedade internacionalizada
– Trata-se de um tipo de convergência entre entretenimento e utilidade? O show, sim, mas politicamente correto, unindo os ‘melhores’ dos mundos?
– Não, de modo algum. Show politicamente correto, pelo amor de Deus, isso é cerimônia de entrega do Oscar! É verdade que muito telejornal tenta chegar lá, mas não é disso que falo aqui. Nem de convergência utilitarista, ou do entretenimento utilitário.
Em resumo, essas tintas mais escalafobéticas do que chamam de espetacularização, embora eu também não goste de palavras terminadas em ‘zação’, comparecem a tudo: aos outdoors, aos anúncios de rádio, de TV, às manchetes de jornal. A cobertura do Haiti está dentro disso. Faz parte da mesma gramática, do mesmo modelo.
Surpreendente seria se ela se diferenciasse. Ela segue a lógica geral. Daí que, dentro da lógica geral, ela se diferencia não por ser mais ou menos espetacular, mas por apontar uma direção que põe em relevo os direitos fundamentais, a solidariedade, a justiça social. É como se o Haiti ficasse no Brasil. Ao mesmo tempo, é como se, aos poucos, a imprensa se abrisse à evidência de que pertencemos a uma comunidade cujos contornos são redondos como o planeta, e não recortados como as fronteiras políticas entre as nações.
– Ou seja, se não é puramente circunstancial, a História não acabou e há uma mudança de matriz em curso.
– Não. Não acredito em nenhuma mudança de matriz futura. A tendência é o aprofundamento disso que estamos chamando precariamente aqui de ‘matriz do espetáculo’. O Haiti, nesse sentido, é um reality show mais hardcore. Também não acredito em mudança de matriz no que se refere à atitude da comunidade internacional em relação ao Haiti. Apenas penso que os jornalistas brasileiros, a despeito de todos esses apelos impositivos do sensacionalismo, têm conseguido trazer até nós alguns relatos e algumas imagens autênticas, verazes. De resto, estaremos no meio desse turbilhão cada vez mais ‘espetaculoso’, sob doses mais intensas, desafiando os limites do entorpecimento do organismo.
– Então há uma mudança de matriz! Do contrário, qual a importância de não sucumbir? Não há aí um paradoxo?
– A importância disso é que a nossa imprensa vai tecendo, aos poucos, uma teia de pertencimento ao imaginário nacional que inclui o Haiti. Os haitianos estão sendo tratados quase como se fossem brasileiros. E nós não vemos contestações ao fato de o Brasil destinar recursos ao Haiti. Não há sinais de chauvinismo. Não creio que isso seja circunstancial. Creio que estamos passando por uma expansão, para além dos limites nacionais, da capacidade de solidariedade do imaginário brasileiro. Retomo o que já disse antes: claro que existe um megashow em torno das cenas mais chocantes, mas, desta vez, não se trata apenas disso. Além do espetáculo, há um impulso solidário, generoso.
– Mas, se não é chauvinismo e nem é circunstancial, o Brasil está inaugurando um novo paradigma.
– Não posso dizer quanto a outros países. Mas há esse dado novo no comportamento do imaginário brasileiro. Ainda não há pesquisas sobre isso, mas, pelo que se pode intuir a partir dos meios de comunicação, inclusive na internet, temos uma novidade aí. A solidariedade vai se internacionalizando no Brasil. De dentro pra fora. Isso é muito interessante.
Evolução da matriz
– Será que, enfim, Zweig estava certo e o Brasil é o país do futuro?
– Essa é uma pergunta muito maliciosa, traiçoeira, perigosa. Mas, mesmo correndo todos os riscos de dizer isso, acho que o Brasil é, sim, um país que terá um papel central no futuro. E que já é, hoje, um dos lugares mais interessantes do mundo. Eu gosto muito disso aqui. Fora isto, queria dizer uma coisa mais, para fustigar esse pessoal que se refestela achando que é artífice do espetáculo, quando, na verdade, não passa de subproduto descartável do espetáculo. O apetite dessa tal ‘mídia’ por uma catástrofe é insaciável. E não estamos (ainda) mudando a matriz. Essa ‘mídia’ é mais ou menos como a caveira da velha canção de Alvarenga e Ranchinho. Ela sempre vai trocar o coveiro romântico por um defunto fresco. E sempre haverá defuntos frescos dando sopa. Os coveiros vão despencando pelo acostamento.
– Por que você escreveu ‘mídia’ entre aspas?
– Ponho entre aspas porque não gosto dessa palavra escrita assim, ‘mídia’. É um aportuguesamento da pronúncia inglesa de media, que é o plural de medium, meios. Não sei por que a gente não fala simplesmente ‘meios’. Já estaria bom demais. Além disso, há uma indistinção que me incomoda abrigada sob a palavra ‘mídia’. Se ‘mídia’ são os meios, ela abarca um universo muito maior que a imprensa. Inclui publicidade, ficção, games. E, no entanto, muita gente usa ‘mídia’ como sinônimo de jornais. Por isso, quando pronuncio esse termo, procuro me cercar de algum cuidado, nem que seja um par de aspas. Mas voltando ao viés positivo: veja que, na cobertura da TV sobre a ‘agressividade’ da ajuda americana, os haitianos aparecem em on criticando as intenções dos EUA. Dizem que o plano americano é controlar – e não ajudar – o país. Isso é mais um dado novo. A discussão política aparece na TV, as contradições, e isso não era comum.
– Então, Eugênio, insisto: haveria uma mudança de matriz!
– Bem, Arnaldo, se você quiser chamar isso de mudança de matriz, então há. Mas não creio. O que eu vejo é uma evolução da mesma matriz. Não estamos saindo da lógica do espetáculo, mas ela está se complexificando. Há mais contradições dentro dela do que sonhava a filosofia dos anos 60 e dos anos 80.
[Eugênio Bucci é jornalista, escritor, teórico da ética na comunicação e professor de jornalismo na ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP]
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Jornalista