Os pastores evangélicos bolsonaristas com seus urros nos púlpitos defendendo a cloroquina, condenando a vacina, ajudando a disseminar notícias falsas, dizendo que Cristo cura coronavírus, isso não é nada. Atingem com suas mentiras apenas a população de instrução primária, os mais crédulos, chamados de gado ou manada.
O risco maior surge quando universitários parecem decididos a recontar a nossa História, falseando seu desenrolar, seguindo um script de diretor de filme comprometido com a direita, ou extrema-direita, do filósofo do governo federal, Olavo de Carvalho. O pior é que isso já existe e já mereceu até uma reportagem no jornal Estado de S. Paulo, com o título de Netflix de Bolsonaro.
Trata-se da produtora de televisuais Brasil Paralelo, cuja última produção versa sobre a Argentina. Uma bela montagem de uma coletânea de documentários, mostrando como o peronismo, o estatismo, o sindicalismo e as nacionalizações enterraram nossos vizinhos. Imagino os argentinos furiosos com tal sincretismo e tenho arrepios ao pensar na utilização dos recursos televisuais do Brasil Paralelo por Bolsonaro, para reescrever a vida dos nossos heróis e dos nossos momentos históricos.
Já existe mesmo um filme produzido pelo Brasil Paralelo sendo exibido nas escolas primárias. Embora seja uma produtora criada há cinco anos, só agora, ao ver a trilogia sobre a Argentina, tomei dela conhecimento. Não me lembro, em minhas coberturas de festivais de cinema, de ter visto filmes com visões de direita sobre a realidade brasileira. Imagino não mudar essa situação nos próximos festivais, caso a Ancine leve o cinema brasileiro a deixar de lado a crítica social, e a se alinhar com o pensamento olavarista, bolsonarista ou evangelista.
Surgir uma entidade desejosa de incorporar nos seus produtos visuais um apoio ao governo Bolsonaro não constitui em si mesma uma surpresa. Nos anos 60, quando o Brasil vivia o clima das reformas sociais de base, sob o governo João Goulart, a oposição das forças de direita tinha criado seus órgãos de reflexão e de oposição, para enfrentar as ideias socializantes presentes na música, teatro e literatura.
A oposição contava com o apoio de industriais e setores financeiros, que financiavam entidades como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPÊS), e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), ou de organizações classistas como o Conselho Superior das Classes Produtoras (Conclap). Na época, praticamente não existiam os evangélicos, eram os católicos conservadores que apoiavam a direita e a extrema-direita nos seus desejos de golpe.
O IPÊS e o IBAD procuravam agir, principalmente junto aos universitários, através de publicações, reuniões e congressos.
A comparação não vai além. Hoje a situação nada tem a ver com os anos 60, nos quais existia um clima de euforia cultural de esquerda. A miséria intelectual atual no Brasil caracteriza o governo Bolsonaro, cercado pela mediocridade. É esse vazio que o Brasil Paralelo almeja preencher, se alinhando com o governo e seu dirigente, Lucas Ferrugem, se declarando anti-comunista e de direita.
Ideias de direita
Numa reportagem sobre Brasil Paralelo publicada na Folha de S.Paulo, o jornalista Fábio Zanini fala do crescimento da produtora Brasil Paralelo e de sua mudança de Porto Alegre para São Paulo, num bairro nobre, a ponto de se tornar uma referência na difusão das ideias do presidente Bolsonaro. Para comemorar o dia do golpe, 31 de março, a produtora lançou no ano retrasado, 1964: o Brasil entre Armas e Livros, dando uma versão favorável aos militares, razão pela qual a produção foi elogiada por Bolsonaro e por seus filhos.
O jornalista do Le Monde Diplomatique Brasil, Diego Martins Dória Paulo, chama Brasil Paralelo de máquina do fascismo cultural, afirmando que “a empresa do olavismo cultural falsifica o debate acadêmico”. Para ele, depois de uma análise fria da produtora, já existe um negacionista do racismo na Fundação Palmares, e assim é que se gesta uma nova cultura brasileira, como diria o ex-secretário da Cultura Roberto Alvin, acusado de simpatia pelo nazismo.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.