Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Cadê o Haiti? Cadê Bruna?

A mídia levanta assuntos, bombardeia o mundo inteiro com um tema ao qual ninguém pode ficar indiferente e pouco tempo depois abandona de tal modo o assunto que ninguém mais ouve falar dele.

Cito dois casos recentes. O que terá acontecido com as famílias dos mortos e desaparecidos das encostas do Rio nas recentes tragédias das chuvas? Semana passada me contaram que algumas empresas ainda estão com os donativos encaixotados, aguardando que sejam recolhidos. Os destinatários devem estar precisando muito dessas doações, mas provavelmente nem sabem que a conhecida generosidade do brasileiro fez com que fossem arrecadadas montanhas de donativos dos quais as instituições encarregadas de apoiar as vítimas ainda nem sabem o total. Qual foi o caminho das doações? Chegaram aos destinatários? Nenhum editor pautou esta matéria indispensável?

E o que houve com o Haiti? O povo está sendo socorrido? As vítimas do terrível terremoto, que levou de roldão também a heroína brasileira Zilda Arns, irmã do cardeal Evaristo Arns, foram beneficiadas pela ajuda internacional? Não sabemos. A mídia, nacional e internacional, esqueceu o Haiti, esqueceu a tragédia que vitimou o Rio de Janeiro, Niterói e outros municípios vizinhos, esqueceu Zilda Arns e, pasmem, esqueceu também Evaristo Arns, a quem tantos brasileiros devem a vida porque o cardeal teve a coragem de visitar as prisões e mostrar que aqueles que, às vezes, não podiam contar com ninguém, podiam contar com ele.

Integrada ao novo meio social

Agora cito um caso antigo. Em 1986, uma família israelense adotou em Curitiba uma menina de apenas quatro meses. Chamava-se Bruna. Algumas nuances da história não puderam ser publicadas.

Graças a meus amigos escritores, ambos catarinenses – o cartunista e cronista Dante Mendonça, e o jornalista, cronista, dramaturgo e romancista Manoel Carlos Karam, que a essa época trabalhavam no jornal O Estado Paraná e na sucursal de uma das televisões que cobriu nacionalmente o caso (não é omissão voluntária, esqueci qual era o canal) –, acompanhei os bastidores desse caso, pois estava em Curitiba dois anos depois, em 1988, quando os pais, movidos por não se sabe bem quais forças, manipulados ou não, disseram que queriam a menina de volta.

Deu-se então o que todo mundo sabe: se é contra o pobre, o fraco, o indefeso, a lei funciona e é aplicada com rigor e presteza.

Os pais biológicos, apoiados por uma equipe de televisão da Grã-Bretanha, foram a Israel reclamar a filha. A Justiça israelense cumpriu a lei. A adoção tinha documentação irregular. A menina foi devolvida aos pais. Os jornalistas britânicos deram a impressão de que, como num conto de fadas, a Chapeuzinho Vermelho brasileira tinha sido salva do casal de lobos israelenses. Acompanharam a família, unida outra vez, na viagem de volta a Curitiba, e fizeram mais algumas matérias que correram o mundo. Naturalmente, tiveram que mostrar também que os pais adotivos e o povo de Israel choraram juntos a partida. Bruna já falava hebraico e estava perfeitamente integrada ao novo meio social.

‘Infelizmente não pude escolher’

E depois? Depois, nunca mais se falou nisso até que em 2008, Nili Tal, uma jornalista israelense, veio ao Brasil saber o que tinha acontecido com Bruna, passados vinte anos. Eis, em poucas linhas, o que descobriu. O pai de Bruna era alcoólatra, fato omitido diligentemente por aqueles que a queriam trazer de volta e, pouco depois de chegar ao Brasil, abandonou a família. Aos 13 anos, Bruna engravidou e parou de estudar. A futura vovó, em vez de amparar a filha e a neta que estava por nascer, expulsou as duas de casa. Sete anos depois, não tendo mais para onde ir, Bruna, já então com dois filhos, foi morar com os pais numa área muito pobre. O vovô passou a bater nos netos.

Cadê a mídia que impediu que a menina Bruna prosseguisse com uma vida digna em Israel? Escafedeu-se! Sabemos que devemos muitos avanços da mídia a denúncias muito bem feitas, documentadas, comprovadas. Mas a função da mídia é apenas denunciar?

A mídia esqueceu também o escritor que estava nos bastidores das reportagens de 1988. Manoel Carlos Karam morreu no dia primeiro de dezembro de 2007, aos sessenta anos. Deixou uma obra memorável, entre romances, contos, crônicas, peças de teatro, roteiros de cinema. Em todos os seus livros o tema solar é o absurdo da condição humana, as trapaças do destino, a função decisiva das ninharias nas tragédias. Cada vez que me contava, nesses anos todos, a tragédia da menina Bruna, xará de seu único filho, emocionava-se com a história e se perguntava por que razão a mídia tinha feito aquilo com a menina.

Por que a mídia faz isso conosco? Move-nos a todos e depois nos abandona sem pai nem mãe aí num canto do mundo, sem que saibamos o que aconteceu com aquelas pessoas que um dia mereceram tanto nossa atenção.

Bruna disse à jornalista israelense que a reencontrou em 2008 e a entrevistou: ‘Infelizmente não pude escolher. Se pudesse, teria ficado em Israel.’

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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras