Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Camponesas queimam filme no Dia da Mulher

Ser mulher, demonstra o dia 8 de março, embute uma luta sem chefia e com salário menor para a trabalhadora. Ou uma luta cheia de filhos e desempregada para uma inscrita do Bolsa-Família. É a briga das feministas contra o machismo. A imprensa costuma preparar um monte de pautas frias para o Dia Internacional da Mulher. Em 2006, foi diferente, rolou notícia quente. A luta das sem-terra queimou o maior filme na imprensa.

De lenço lilás no rosto, elas destruíram um viveiro de mudas de eucalipto da companhia de celulose Aracruz, em Barra do Ribeiro, município próximo a Porto Alegre. Denuncia a Via Campesina que a expansão de florestas artificiais por milhares de hectares não gera emprego, não distribui renda, camufla a improdutividade e é predadora da biodiversidade. O deserto verde, expressão para iniciados no tema, recebe apoio do governo Lula e é controlado pelo grande capital.

Qualquer ação do MST, por mais coerente ou cristã que seja, é historicamente malvista pela imprensa, quando não noticiada como crime. O movimento está careca de saber disso, não espera fidelidade nas apurações da Veja ou da Folha de S. Paulo. Em Zero Hora, um ex-ministro do STF, Paulo Brossard, já havia traçado, muito antes desse 8 de março, paralelo entre sem-terra e traficantes de droga. A mídia gaúcha, digamos assim, tem até jurisprudência publicada para criminalizar os movimentos sociais.

A estratégia para enfrentar a imprensa burguesa, diz a cartilha socialista mais atualizada, é disputar hegemonia na sociedade. Como fazer isso? Orientando uma numerária a destruir plantas em defesa da vida e da riqueza do planeta? Isso mais parece coisa do Opus Dei, que proíbe livros de José Saramago, Fernando Henrique Cardoso, toda a obra de Marx e de Freud a seus discípulos.

Disputa de hegemonia

A diferença é que ninguém ocupa livraria para queimar as edições trazidas por seu próprio index. O Opus Dei também não investe contra o viveiro da companhia de celulose que ajuda a imprimir obras demoníacas. Mais inteligente, manda um numerário organizar o Master em Jornalismo e firmar laços com a Associação Nacional dos Jornais (ANJ). Estreita relações, faz o apostolado da opinião pública, cumpre fielmente a estratégia definida no vademecum de Escrivá.

Dessa forma, se um professor de ética for flagrado assinando uma crítica técnica ao livro O código Da Vinci, o diretor da TV Globo sai em sua defesa, dizendo ser um escândalo perguntar uma coisa dessas a um homem religioso. Mas destruir um viveiro de mudas, além de transformar o suposto vilão em vítima na imprensa filiada à ANJ, fez com que até a Agência Carta Maior tenha opinado negativamente. ‘Foi um tiro no pé’, escreveu o articulista Marco Aurélio Weissheimer.

Na disputa de hegemonia, o MST jamais terá a mesma facilidade de uma instituição que nasceu e cresceu em meio à linha dura, ao lado de um ditador e cheia de cargos na Espanha franquista. Os sem-terra manifestam-se contra as estruturas de poder das quais o companheiro-ministro Miguel Rosseto hoje faz parte, inclusive como um dos atores principais da conferência da FAO sobre reforma agrária, que acontecia em Porto Alegre no dia do vandalismo.

‘Medida preventiva’

A luta dos sem-tera é difícil, inglória e tardia no Brasil. Os inimigos dessa luta estão cada vez mais dissimulados e sofisticados. A ocupação de terras é sempre um crime de invasão na imprensa, é ato terrorista na CPI da Terra, embora não faltem opiniões contrárias de operadores do Direito, como as do ex-procurador geral da República Cláudio Fonteles. Mas, nesse 8 de março, a estratégia do MST foi tão equivocada que até parece ter acontecido alguma coisa do tipo ‘deixa destruírem o viveiro, agora eles(as) queimam o filme de vez’.

Os serviços de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul, que mataram um sindicalista em movimento pacífico em 2005 e estão sempre ao lado do MST (para garantir-lhes proteção, decerto), nem ficaram sabendo da movimentação de quase 2 mil pessoas para o horto da Aracruz. A Polícia Rodoviária Federal diz até ter acompanhado os cerca de 40 ônibus, mas achou que era movimentação normal. Ou seja, nenhum organismo policial ficou sabendo de nada. Mal informados: a imprensa sabia que alguma coisa iria acontecer.

Havia pelo menos três equipes de TV em Barra do Ribeiro para registrar a depredação, ocorrida por volta de 4 da manhã. As imagens correram mundo, foram parar até na al-Jazira. Dificilmente, essas imagens conquistaram simpatizantes à causa da Via Campesina, nem no Brasil nem no mundo, até porque Bush angaria mais simpatia para os palestinos que bin Laden. Quando o próximo sem-terra for assassinado, não será surpresa se nossa imprensa reivindicar a atenuante da ‘medida preventiva’ para o ruralista ameaçado.

Na pauta quando?

O grupo RBS (80% da mídia gaúcha e catarinense) diz não ter sido chamado para registrar a depredação do viveiro. Está orgulhoso de ter sido furado e mergulhou de cabeça na repercussão, porque diz não compactuar com o crime – como se as equipes de reportagem de outras emissoras que cobriram o fato fossem cúmplices do vandalismo. Dois editoriais de Zero Hora, no entanto, desconstroem, em parte, o bom-mocismo do jornal.

Para a abertura da conferência da FAO sobre reforma agrária, mas antes da ação de depredação do viveiro da Aracruz, Zero Hora sustentava que ‘a distribuição de terras deixou, há muito, de ser solução de consenso para o acesso à produção ou instrumento de redução de desigualdades sociais’. É uma ilusão acreditar que o campo possa acolher tanta gente, sustenta outro trecho do editorial de 7 de março. Já no dia 9 de março, ao contrário do que afirmava dois dias antes, Zero Hora diz, cheia de lucidez, que ‘a reforma agrária é uma pretensão legítima de segmentos sociais excluídos, desde que os meios para chamar a atenção para a causa respeitem a lei’. O MST ainda está para descobrir uma forma legal de chamar a atenção para sua causa nas páginas do periódico que, na antevéspera e desde sempre, deixa bem claro ser contra a distribuição de terras.

Mas a conclusão do editorial de 9 de março é óbvia e irretocável. ‘É uma evidência de que a organização, ao patrocinar ações radicais como a de ontem, está prejudicando a própria causa’. Resta saber quando as reais causas da redução de nossas florestas naturais, ligadas ao agronegócio e a atividades monocultoras como a soja, como salienta atual série de reportagens da inglesa ITV, será pauta na imprensa filiada à ANJ. Ou quando todos os interesses em 250 mil hectares de eucaliptos vão entrar nas reuniões de pauta.

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Jornalista