Não foi um domingo qualquer, era o Dia de São Jorge, santo cultuado nos arredores suburbanos, em terreiros de macumba e igrejas cariocas, que protege com seu cavalo branco e a lança sobre o dragão vencido a luta do povo – e homenageado por Chico Buarque em seu novo disco, intitulado Carioca.
À meia-noite de sábado para domingo, a cidade ouviu fogos como se fosse o Ano-Novo. De manhã, os jornaleiros distribuíram o exemplar do Globo com a entrevista que fez o povo, que estava à-toa na vida, parar e ver o Chico passar cantando as coisas do Rio. Na edição da revista dominical do jornal, o compositor-escritor-cantor estava na capa, pousado em frente à Central do Brasil, lugar de onde partem os trens que levam ao coração do Rio suburbano e a sua periferia. Nas respostas, Chico fez questão de destacar a canção Subúrbio, dizendo: ‘Percebi que o Rio era muito presente no disco e era mesmo a idéia central’. Os ritmos que ele classifica de bem ‘cariocas’, como choro, canção, bossa nova, samba bem brasileiro, samba-canção abolerado e até, segundo ele conta, um toque da música americana que se ouvia no Rio dos anos 1950, fazem parte do espírito do disco.
‘O Rio de Janeiro tá ferrado’, ele desabafa, classifica os políticos do estado como os piores do Brasil, lamenta a má qualidade do futebol, mas defende os favelados, fala da tensão muito grande, do fato de a população da cidade viver em alerta constante, e conclui, com seu jeito franco: ‘Eu não tenho a fórmula da salvação do Rio de Janeiro’.
Renascimento da cidade
Mas o carioca Buarque, dos olhos de farol que emitem azul refletindo decerto o céu e o mar do Rio de Janeiro, corajosamente vai revelando que considera este um bom momento para se afirmar carioca. Chico tem a genialidade e a arte. Tem a ginga, tem o sangue que corre com o humor que ele atribui à natureza exuberante do Rio: ‘Com a paisagem carioca, até o engarrafamento fica agradável’.
O moço carioquíssimo, talento reconhecido por unanimidade, aqui e acolá, lembra de sua querida Mangueira e discorre sobre o subúrbio de hoje. Este é o Chico que libera a fala da Penha, de Irajá, Olaria, Acari, Vigário Geral, Piedade, Maré, Madureira, Pavuna, Inhaúma, Cordovil, Pilares, Encantado, Bangu, Realengo, Meriti, Nova Iguaçu, Paciência. Fala! Ele canta e incita.
O gênio da canção se antena ao clamor de um povo que ele identifica como renascente, não nostálgico, bem atual, que usa a música para falar, gritar, denunciar. Chico declara em alto e bom tom que não acredita no fim da canção. Avisa que não se acomodou e nem se aposentou – o que seria a tristeza geral da nação brasileira, evidentemente.
Taí um Chico ressurgente, que se mostra atualizado e tão presente no domingo da cidade, no dia de São Jorge, parando as esquinas, as bancas, com a sua carinha de menino-carioquíssimo, a relembrar Noel Rosa, Mario Reis, Sinhô, Donga, Chiquinho, Silas de Oliveira e o compadre Vinícius, padrinho da sua filha Silvia, rememorando sua parceria de presente em Gente humilde, que o poetinha lhe ofereceu para terminar alguns versos.
‘Quero falar da Lapa, do renascimento do samba na Lapa. Esse é o meu Rio, o Rio da Central do Brasil, um Rio que quer vencer a violência e viver em paz.’ A entrevista despertou a vontade de sair correndo e comprar o disco. Quem há de resistir e não parar para ouvir o Chico passar cantando as coisas do Rio inteiro, muito além da Zona Sul?
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Jornalista, Rio de Janeiro