Em meio à tragédia que se abateu sobre a escola Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, no Rio de Janeiro, caos informativo e notícias desencontradas. As manchetes dos principais veículos de imprensa destoavam. Não se sabia o número de vítimas e houve ainda grande especulação até mesmo sobre a motivação do assassino, enquanto as redes de TV e jornais buscavam os melhores ângulos para mostrar de forma mais crua a tragédia. Sangue, choro e desespero foram mostrados incansavelmente pela grande mídia, cada uma tentando ir mais além, numa competição que beira a desumanidade.
Em pleno dia do jornalista, o que vimos foram estes dando palpites, chutes, repassando a notícia sem qualquer apuração – pior, sem nenhuma responsabilidade.
A comparação feita por muitos com Columbine, escola dos EUA onde 15 pessoas foram mortas em 1999 (incluindo os dois responsáveis pelo massacre), funciona como paralelo não só pelo evento de similar mortandade, mas também pela cobertura midiática inconsequente. Nos EUA, os culpados foram logo encontrados: jogos violentos de videogame e Marilyn Manson. Os dois rapazes responsáveis pelos massacres jogavam Counter Strike e ouviam a cantora. Estava resolvido. Tudo sem grandes questionamentos sobre a sociedade em si, sobre o modelo de ensino e mesmo sobre o irrestrito porte de armas. Nos EUA, as chacinas se repetem e, da mesma forma, pouco é questionado sobre os reais motivos, sobre a estrutura da sociedade e sobre algo que hoje finalmente vem sendo tratado como um problema generalizado, o bullying. Prática comum, e que muitos pensavam restrita aos EUA, começou a ser olhada mais profundamente no Brasil depois de vários casos de violência nos colégios do país. Mas a prática foi tomada como um fim em si mesma, não como o reflexo de uma sociedade doente.
Teses para se criar o personagem
Em Realengo, o atentado provocou 11 vítimas fatais (nove meninas, um menino – com idades entre 12 e 14 anos – além do atirador) e outras 13 pessoas ficaram feridas, mas até se chegar a este número a mídia teorizou 17 mortos, 13 mortos, cada site de veículo noticioso chutava o número que melhor lhes parecia. O número de feridos variava igualmente, passando dos 20 para alguns veículos. A velocidade da internet atropelou o jornalismo. Na tentativa de serem mais rápidos que a concorrência, jogavam notícias nos portais sem qualquer confirmação.
Quanto mais sensacionalista a cobertura, melhor. E sucessivas “teses” foram levantadas pela mídia, cada uma sendo desmentida com o passar do dia. O mote era o da novelização da tragédia, a cada minuto, um novo capítulo. Na TV, assumiram que o assassino, chamado Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, era ateu. No UOL e na Folha de S.Paulo, informam que, segundo sua irmã, ele seria muçulmano. Durante toda a manhã estava aberta a temporada de construção de estereótipos. A grande mídia deu amplo destaque também ao fato dele ser supostamente portador de HIV, como se, com isso, tivessem encontrado o motivo para o massacre, mesmo antes de ter conhecimento do conteúdo da carta que ele havia deixado e de que só a polícia tinha noção do conteúdo.
Para o Extra, o rapaz se interessava por assuntos ligados ao terrorismo; na Band News, a informação de que a carta do suicida continha “características fundamentalistas” e assim em diante. Wellington era introvertido, isolado, calado, filho adotivo, tímido, muçulmano, ateu, HIV positivo… A cada minuto, novas teses para justificar o massacre, para se criar o personagem.
Sem qualquer responsabilidade ou respeito
Nas primeiras horas após o ataque, cada veículo informava a seu bel-prazer se Wellington seria ex-aluno, pai de aluno ou apenas um transeunte transtornado. A sensação era a de que chutavam, esperando ter a sorte de acertar e dar o furo. Um verdadeiro show de sensacionalismo e desrespeito, coroado pelas tentativas de jornalista de espremer o máximo de drama das vítimas, de pais e crianças que estiveram presentes ou próximos.
Com a carta divulgada, jornalistas e convidados em programas de entrevistas analisavam os problemas mais profundos de uma pessoa que jamais viram, jamais conheceram. Através da leitura parcial de sua carta de suicídio, chegaram à única conclusão de que o assassino era alguém perturbado. Nos programas de “debates”, já normalmente sensacionalistas, “especialistas” debatiam o porte de armas, os problemas psicológicos do assassino, o papel da religião, mas em nenhum momento houve qualquer questionamento de uma sociedade individualista, competitiva, baseada no lucro e no sucesso individual, em que pessoas são excluídas por suas supostas inaptidões dentro deste modelo capitalista.
Nas redes sociais, o Estado de S. Paulo convidava seus leitores a assistir a um vídeo com familiares das vítimas em desespero. Na Record, jornalista forçando ao ponto de fazer uma criança chorar e dizer que achou que ia morrer. Em geral, cada rede de TV buscava as melhores entrevistas com vítimas e testemunhas, o choro delas era apenas um bônus. Programas durante todo o dia se desdobraram ao analisar os motivos, em apontar o dedo em mil direções, sem qualquer responsabilidade ou respeito pelas vítimas e por seus parentes, cujo sofrimento servia apenas para vender jornais e garantir Ibope. Na Globonews, durante a cobertura imediatamente posterior ao massacre, um jornalista chegou ao ponto de perguntar se armar toda a população seria uma solução para evitar este tipo de episódio.
Uma cobertura vergonhosa
Outros se perguntavam se a solução não seria a de restringir o porte (lembrando que parte da mídia, durante o Referendo sobre Armas, em 2005, defendeu a liberdade do povo ter armas), mas no fim os discursos permaneceram no campo do achismo. Ideias jogadas sem qualquer preocupação om o telespectador e com o bom jornalismo.
Ao invés do mínimo de respeito pelas vítimas, o jornalismo brasileiro deu um show de irresponsabilidade. Sobrou até para a internet. Se religião, fundamentalismo e terrorismo islâmico soariam pesado demais para o público tupiniquim (já basta terem importado dos EUA o paralelo com Columbine), a solução foi culpar a internet, pois o responsável pelo massacre supostamente era uma pessoa isolada e que passava muitas horas na internet. Assim que descobrirem sua banda ou cantor favoritos, a mídia terá outro alvo, outro assunto para analisar profundamente em todos os horários possíveis.
Uma cobertura vergonhosa, apressada, com cada veículo buscando mostrar o ângulo de maior miséria humana. O massacre aconteceu em pleno Dia do Jornalista. Não poderia ser mais infeliz.
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Jornalista, blogueiro e mestrando em Comunicação, São Paulo, SP