Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Capitalismo e jornalismo

É saber corrente o fato de haver íntima correlação entre o desenvolvimento do capitalismo e a expansão da imprensa. Não reside, pois, nessa constatação nenhuma singularidade crítico-teórica. Segredo também não há em perceber-se que é sob o impulso dos ideais do liberalismo que floresce o variado naipe de periódicos, seja no formato, seja no conteúdo, até chegarmos aos atuais tempos em que se multiplicam velozmente as ofertas de jornais, tablóides e revistas para os mais diferenciados gostos e interesses.

A propósito do tema – afora o que, na primeira metade do século passado, pontuaram os teóricos frankfurtianos, especialmente Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse –, cabe registrar, no Brasil, algumas publicações a respeito, a exemplo de Imprensa e capitalismo (Kairos, São Paulo, 1984) e A produção social da loucura (Paullus, São Paulo, 2003), ambos da autoria de Ciro Marcondes Filho.

Igualmente são destacáveis os capítulos 5 e 8, (‘A tradição de Frankfurt e a extinção do jornalismo’ e ‘Capitalismo e jornalismo: convergências e divergências’), presentes no volume O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo (Porto Alegre, Tchê, 1987), de Adelmo Genro Filho.

Modos de capitalismo e práticas jornalísticas

Mostram-se bastante rentáveis os enfoques propostos pelos autores mencionados. Todavia, para o foco específico que pretendo aqui desenvolver – a relação entre o modelo jornalístico dominante no Brasil e a moldura capitalista presente no país – parece-me mais eficaz partir de uma observação da psicanalista e ensaísta Maria Rita Khel, especialmente quando ela alerta para a diferença entre ‘capitalismo de produção’ e ‘capitalismo de consumo’.

Obviamente, não se trata de firmar uma oposição de natureza excludente. Afinal de contas, produção e consumo representam a dupla face de um sistema integrado pela ordem do capital em parceria com a ordem social. O que se deseja firmar é o perfil identitário que cada um dos modelos possui.

Em harmonia com o pensamento de Khel, o ‘capitalismo de produção’ está enraizado no ideário da ética protestante no qual, ao sentimento de renúncia, corresponde o de compensação; enquanto o ‘capitalismo de consumo’ tem suas raízes no ‘hedonismo’, vertente assinalada por certa aflição pela procura do prazer contínuo. O primeiro, cuja inspiração é marcadamente de origem européia, parte do pressuposto de que tudo, no presente, devemos fazer para, no futuro, obtermos a ‘experiência gozosa’ merecida. O segundo, diferentemente, persegue a realização imediata dos impulsos, fazendo do presente o ‘espaço-tempo’ de sua razão maior.

A distinção de percepções e de aspirações, decorrentes das duas modalidades de capitalismo, repercute diretamente no modo como a atividade jornalística tende a comportar-se. Talvez, nessa questão, se possa compreender o que separa o jornalismo brasileiro do jornalismo europeu. Da mesma forma que, no Brasil, cultuamos a ‘novidade’ e desprezamos a ‘memória’, assim agimos em relação ao noticiário, substituindo o conceito de ‘narratividade’ pelo de ‘atualidade’, o que também serve para potencializar o apelo ‘sensacionalista’.

Como conseqüência, assim como o consumidor vive o momento prazeroso, fruto da conquista do ‘objeto’ (sonho de consumo), na condição de receptor das mensagens tende a consumi-las sob mesma dinâmica. A exemplo do consumidor que, passado o ‘efeito mágico’ do consumo, desloca o olhar para outro alvo, o leitor desliza seu interesse para novas informações. Não reprime, não recalca e não sublima; simplesmente, descarta-se, caindo na ‘vacuidade ensimesmada’, o que lhe produz certa insatisfação (sensação de incompletude permanente), de procedência ignorada.

É nesse quadro de referências que o jornalismo praticado no Brasil deveria redirecionar seus procedimentos, caso almeje desempenhar função efetivamente honrosa. A permanecer como está, a tendência se inclina para sinais de visíveis perdas de receitas na razão direta em que se multiplicam ofertas de ‘novidades’ em outras áreas e fontes. É ingênuo considerar-se que a retração de vendas diárias de exemplares se explique tão-somente pela precariedade econômica da população. Este é um fator, mas não é o decisivo, a julgar pela opção de consumo de outros produtos.

Círculo vicioso

É perceptível nos hábitos da população crescente adesão a produtos cujo nível de exigência qualitativa se vem pautando por progressivo deperecimento. No campo cultural, o quadro é flagrante. Nos segmentos em que se verifica a vontade de maior qualificação, detecta-se a falta de meios adequados e naqueles onde os meios estão disponíveis constata-se ausência de inteligência ativa. Como resultado, chega-se a uma situação degenerativa do corpo societário no qual o devaneio e a inércia se somam a frustração e incapacidade reativa, o que, em muito, rebaixa o impulso imaginativo e a ousadia criadora.

No médio prazo, surgem os reflexos de apatia na política, na economia e na cultura enquanto o modelo jornalístico dominante vai burocraticamente repetindo a fórmula desgastada: sensacionalismo, futilidade, culto a celebridades descerebradas e espetacularização do cotidiano. Tudo a serviço do pragmatismo hedonístico-consumista.

Não cabe também ingenuidade na suposição de que a atividade jornalística se possa dar na contramão radical dos interesses do público. Contudo, torna-se imperioso que o processo de transformação tenha início.

A questão é que está havendo cegueira crítica da parte majoritária do público e acomodação do setor jornalístico empresarial. Enquanto a primeira se perde na esteira do entretenimento barato e vazio, a segunda busca compensação em receitas da publicidade. Assim, nenhum dos dois segmentos altera coisa nenhuma. Nem o ‘consumidor’ elimina a sensação de incompletude, nem a atividade jornalística se lança a uma fórmula diferenciada.

Fica-se num círculo vicioso no qual as partes envolvidas realimentam a própria ‘doença’. Numa ponta, caminha a esmo a ‘vacuidade ensimesmada’; noutra, segue inalterada a ‘superficialidade entulhada’.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA – Rio de Janeiro).