Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Caricatura da liberdade de expressão

Permitam que discorde discordância irreconciliável de todos aqueles que atribuem à liberdade de expressão o direito inalienável que têm todos os jornais de publicarem as caricaturas de Maomé.

Em primeiro lugar – e de acordo ao meu sentir, saber e entender – tal publicação não se ampara na liberdade de expressão, mas muito pelo contrário, a degrada, pois faz uso dela para gerar opinião pública antagônica ao Islã (discriminação explicitamente proibida na Carta das Nações Unidas), e não contra algum dos seus líderes locais ou contra pequenos ou grandes grupos de enlouquecidos fundamentalistas que aninham no seu seio.

A bomba no turbante de Maomé deixa de ser uma simples caricatura e se transforma numa aberrante, injusta e subliminar acusação contra toda a religião muçulmana (discriminação explicitamente proibida na Carta das Nações Unidas no capítulo referente ao direito de expressão e de imprensa). E isso não é liberdade, mas política, digna de um Jean-Marie Le Pen ou de um Joseph Goebbels, mas não de um jornal cuja função é informar sem deformar e publicar sem ofender.

A liberdade de expressão não é nem pode ser um salvo-conduto com o qual se possa viajar desde a verdade até a infâmia, transitando pela mentira e a difamação, mas é e deverá continuar sendo uma conquista que protege o nosso direito de dizer o que pensamos, atacando idéias sem medo de sermos punidos, combatendo ideologias sem o risco de sermos presos, questionando dogmas religiosos sem temer a reação dos crentes desses dogmas que questionamos, mas nunca, jamais aproveitar-se dela para generalizar condutas individuais, criminalizando o todo e não a parte, como é o caso em tela.

Racismo e xenofobia

Não é um segredo que à sombra das religiões frutificaram guerras, floresceram cruzadas, germinaram inquisições e holocaustos que hoje – a posteriori – o mundo civilizado condena com vigor, mas enquanto essas aberrações foram incubadas, paridas e amamentadas pela generalidade dos fieis e/ou com o beneplácito das máximas autoridades religiosas e/ou políticas, o terrorismo islâmico dos dias de hoje é absolutamente minoritário dentro do universo de fiéis desse credo.

Tampouco é um segredo o fato de que se está em fase de orquestração de uma feroz campanha contra essa religião, organizada por setores tão intolerantes quanto os grupos de fanáticos que usam o nome de Alá, do seu profeta, e os símbolos dessa religião, para suas barbáries assassinas. Sim, é a tal guerra de civilizações iniciando os seus trabalhos de parto.

Concordo em que o racismo e a xenofobia que imperam na Dinamarca e na Holanda (se comparamos a sua força com os mesmos sentimentos existentes, por exemplo, na Suíça ou na Suécia, estes dois últimos países seriam considerados modelo de virtude e de convívio, ainda que saibamos que não o são) foram os estopins e a razão principal pela qual tal assunto não morreu na praia, como tantos outros. E foi esse racismo e essa intolerância, bem enraizados na Europa comunitária, que serviram de caixa de ressonância e leitmotiv, e não a liberdade de expressão. Neste caso, essa liberdade de expressão está sendo usada e manuseada para alcançar fins racistas e de hegemonia da cultura ocidental sobre a cultura muçulmana.

Armas diferentes

Lluis Foix, jornalista catalão de La Vanguardia de Barcelona, escrevia, há um par de dias, que o problema é que a Europa vive como se deus não existisse, e os muçulmanos vivem como se ele existisse. Esse abismo é intransponível. Nem a Europa voltará a ajoelhar-se perante os altares nem os muçulmanos deixarão de fazê-lo.

Como todo judeu com memória, recuso-me a esquecer que o nazismo começou com algumas caricaturas. E muito temo que haja uma escalada brutal – ainda que progressiva – neste conflito.

Penso que, neste caso em particular, os que apóiam a publicação por um lado e os que a condenamos pelo outro estamos defendendo a liberdade de expressão, ainda que tenhamos escolhido caminhos diversos e armas diferentes. Só saberemos a quem coube a razão, quando pudermos analisar friamente os estragos que tais caricaturas produziram no tênue tecido das relações entre as sociedades hoje enfrentadas nesse pega-pra-capar em que se transformou o assunto.

******

Consultor de marketing, Suécia (http://shalomania.info)