Ô Jandyra ! Isso não acaba nunca? Já existe bisneto de ex-guerrilheiro.(…) Isso está já passando dos limites. Não demora vai ter descendente de soldado egípcio reclamando de Napoleão Bonaparte. Os crimes de assalto e roubo prescrevem? De terrorismo também? (…) Ficar escavacando feridas é para quem tem algum interesse escuso. Ou dinheiro ou vingança. (‘Bacuri’ – 17/12/2010 – 11h59)
O advento da internet como fenômeno mundial via Word Wide Web (1991) produziu um efeito preocupante na mídia brasileira: o anonimato que vulgariza o debate e eleva o nível de gratuita agressividade nos sites, blogs e espaços de discussão. O livre fluxo de ideias em uma democracia pressupõe responsabilidade e identidade, não a clandestinidade de codinomes que escondem a fragilidade de argumentos e a grosseria de gente que não tem coragem de assumir publicamente suas posições.
Na semana passada, assinei o artigo ‘O Brasil pode acertar as contas com a História‘, que foi replicado em blogs importantes do país: Ricardo Setti, Sul21, Blog da Maria Helena e no portal de minha própria instituição, a Universidade de Brasília (UnB).
Nesse texto, eu exaltava a recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, que condenou o Estado brasileiro como violador do direito à justiça, no que se refere à obrigação internacional de investigar, processar e sancionar os responsáveis pelos desaparecimentos causados pela repressão do regime militar.
A sentença estabelece que o Brasil deve investigar abusos na repressão à guerrilha do Araguaia, início da década de 1970, e contesta mais uma vez a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF, 29/8/2010) de estender os direitos da anistia aos torturadores do regime militar.
Sem prescrição
Na múltipla condição de cidadã, professora e pesquisadora, assumi minhas posições com nome e sobrenome, sujeita às observações e críticas – o que é usual no sistema acadêmico aberto ao livre pensamento no qual estou inserida. Lamento que a grande maioria dos sites ainda admita o recurso aos codinomes, avalizando a prática da opinião semiclandestina.
Exalto, por contraste, o Observatório da Imprensa, um espaço democraticamente aberto a todas as posições, mas sempre atento à plena identificação de seus comentaristas com nome, sobrenome, profissão e cidade de origem, detalhes importantes para dimensionar a diversidade de opiniões que fazem a diferença numa democracia.
Só o anonimato explica a virulência de certos comentários e só a clandestinidade promove a má-educação que rebaixa o nível do debate. É estimulante, portanto, usar do nobre espaço do Observatório para reafirmar essas premissas.
Tenho por hábito recusar o debate com internautas pouco corajosos que evitam mostrar a cara. No entanto, em respeito à responsabilidade da grande maioria do público que leu meu artigo, vou rebater, aqui, os termos enganosos e injuriosos de um internauta oculto sob o codinome de ‘Bacuri’ (leia epígrafe) que comentou o texto em um dos lugares onde ele foi publicado. Respondo:
Ô ‘Bacuri’! Essa discussão só vai acabar quando o Brasil assumir enfim o debate de seu passado recente, sem preconceito e com igual coragem de seus vizinhos do Cone Sul. Existe de fato bisneto de ex-guerrilheiro, assim como já existe bisneto de ex-torturador. Entretanto, até hoje, temos apenas um dos lados punido pelas leis do país. Guerrilheiros foram presos, torturados, processados, condenados e, enfim, anistiados. E seus torturadores? Existe algum torturador condenado, pelo menos um processado, ao menos alguém preso por um único dia neste país?
É essa brutal disparidade que explica, mas não justifica, a impunidade que protege ainda hoje o aparato repressivo que sustentou a ditadura militar brasileira ao longo de 21 anos (1964 -1985). O oculto ‘Bacuri’ ironiza as demandas das entidades de direitos humanos e da sociedade brasileira, lembrando que, ‘não demora’, teremos descendentes de egípcios reclamando da incursão das tropas de Napoleão Bonaparte à terra dos faraós, no final do século 18.
Algo muito mais grave – que o esquivo ‘Bacuri’ não lembra – é o absurdo sigilo de algo bem mais relevante para o Brasil do que as agruras do Egito sob o exército napoleônico. A Guerra do Paraguai (1864-1870) mobilizou 150 mil soldados brasileiros, ao lado de tropas da Argentina e do Uruguai, e 50 mil dos nossos soldados ficaram para sempre nos campos de batalha. Os documentos daquela guerra, o maior conflito armado da América do Sul, continuam tão secretos nos arquivos do Itamaraty quanto a identidade dos torturadores dos porões da ditadura de 1964.
O escondido ‘Bacuri’ pergunta, fingindo inocência, se os crimes de assalto e roubo atribuídos aos grupos da esquerda armada prescrevem. Esses, de fato, prescrevem. Antes da prescrição, contudo, seus autores foram presos, muitos torturados, todos processados e a maioria condenada. O que não prescreve, jamais, é o crime de tortura, mas nem o dissimulado ‘Bacuri’ conseguirá declinar o nome desses criminosos, porque eles nunca passaram sequer pelo constrangimento da denúncia perante a Justiça brasileira.
Rápido no gatilho
Por fim, o encoberto ‘Bacuri’ produz sua última perfídia, ao dizer que ‘ficar escavacando feridas é para quem tem algum interesse escuso [por] dinheiro ou vingança’.
Cobrar a liberação de documentos secretos e a punição de torturadores para crimes que nunca se apagam não é ‘escavacar’ feridas. É uma obrigação moral de nações que respeitam sua história e seus povos. A médica Michelle Bachelet, que foi presa e torturada pela ditadura Pinochet em 1975 e chegou à presidência do Chile pelo voto popular em 2006, dizia exatamente o contrário do fingido ‘Bacuri’: ‘Só as feridas lavadas cicatrizam’.
Precisamos, sim, escavacar nossas feridas, para especial irritação do recôndito ‘Bacuri’ e seus companheiros com interesses escusos pelo esquecimento ou, pior, pela cumplicidade. Não se quer dinheiro nem vingança contra torturadores. Quer-se a verdade.
Um detalhe especialmente intrigante chama a atenção. Todos aqueles que, como eu, condenam a tortura – um crime de lesa-humanidade que nunca prescreve – apresentam-se para defender esta causa de cara limpa, com nome e sobrenome. Todos os que defendem a tortura e seus algozes nunca se mostram e sempre se escondem sob pseudônimos, codinomes ou apelidos de duplo sentido.
Não se sabe se por descuido, por ironia ou mera provocação, o ‘Bacuri’ clandestino em plena democracia usa agora, para me contestar, o mesmo codinome de um dos mais emblemáticos casos de prisão, tortura, morte e desaparecimento forçado da ditadura brasileira: o mineiro Eduardo Leite, conhecido como Bacuri, membro destacado das duas siglas mais importantes da esquerda armada (VPR, Vanguarda Armada Revolucionária, e ALN, Aliança Libertadora Nacional) e participante dos sequestros do cônsul japonês em São Paulo, Nobuo Okuchi, e do embaixador alemão no Rio de Janeiro, Ehrenfried von Holleben em 1970.
Era, por isso, um dos nomes mais odiados pela repressão. Foi preso em agosto de 1970, no Rio de Janeiro, quando levantava informações para um terceiro sequestro, o do embaixador inglês. Passou pelos centros de tortura da Marinha (Cenimar), na capital fluminense, e pelos porões do DOPS e do DOI-CODI, em São Paulo. Foi barbaramente interrogado por alguns dos expoentes da tortura brasileira – entre eles os policiais Carlinhos Metralha, Ademar Augusto de Oliveira (o Fininho), Astorige Corrêa de Paula (o Correinha), José Carlos Campos Filho (o Campão) e o líder de todos eles, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe do DOPS. Eduardo Leite padeceu nas mãos de seus torturadores durante 109 dias, um inferno cinco vezes mais longo do que os 22 dias de tortura (não necessariamente menos sofridos) pelos quais passou a presa Dilma Rousseff na OBAN.
O policial Carlinhos Metralha afirma que Eduardo sobreviveu até o dia 7 de dezembro de 1970 na fazenda ’31 de março’, o sítio clandestino de tortura que Fleury montou nas cercanias de São Paulo. Foi o mesmo dia em que Carlos Lamarca e a VPR sequestraram o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Sabendo que Eduardo estava preso e sob tortura, a VPR colocou seu nome em primeiro lugar na lista de 70 presos políticos a serem libertados em troca do embaixador. O delegado Fleury foi mais rápido e Eduardo morreu naquele mesmo dia.
Clandestinidade corajosa
A mulher de Eduardo, Denise Crispim, grávida de Eduarda, encontrou seu corpo abandonado pela polícia no cemitério de Areia Branca, em Santos. Estava quase irreconhecível: os dois olhos vazados, as duas orelhas decepadas, todos os dentes quebrados ou arrancados, as costelas partidas, cortes profundos, hematomas por pancadas e marcas de queimadura por brasas de cigarros em todo o corpo. Eduardo Leite, o verdadeiro Bacuri, foi morto aos 25 anos.
Duas semanas atrás, no mesmo dia 7 de dezembro, exatos 40 anos após o seu assassinato, a Câmara Municipal de São Paulo entregou o título de Cidadão Paulistano a Eduardo Leite, mineiro de Campo Belo. A homenagem foi recebida pela viúva, Denise.
O assassino de Bacuri, o delegado Sérgio Fleury, nunca mereceu, nem recebeu nada parecido. O outro ‘Bacuri’, que agora sobrevive na corajosa clandestinidade da internet, deveria escavacar essa ferida para tentar descobrir os interesses nada escusos que explicam tal esquecimento.
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Linguista, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB)