Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carta ao Dines

Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 2005

Meu caro Dines:

Não freqüento habitualmente o site do Observatório da Imprensa. Quando o OI toca no meu nome, uma alma certamente piedosa o envia pelo Outlook. Não faz muito, fui obrigado a responder a um de seus colaboradores que por duas vezes afirmou que o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro não se manifestou no processo que dei entrada na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Respondi com a verdade, fácil de ser apurada. Em papel timbrado, com assinatura do seu presidente (com firma reconhecida em cartório) o Sindicato informou o que lhe competia à Comissão.

Vem agora você criticar a crônica que publiquei na FSP defendendo-me da acusação de um ministro do STF, que em entrevista a O Globo publicada com destaque, me atribuiu o crime de estelionato, havendo o jornal reincidido na acusação, repetindo-a nas frases da semana publicadas no domingo seguinte. Não se deram ao trabalho de ouvir o outro lado, cláusula pétrea de qualquer Manual de Redação.

Independente dos manuais, cito o bom senso:

a) não há crime no fato de um cidadão, amparado pela Constituição, cobrar do Estado a indenização que o próprio Estado admite dever a alguém em sua Lei Maior;

b) É obrigação de qualquer cidadão defender-se da acusação de um crime, que constitui fato público. Não se trata de defender ‘problemas pessoais’, como você diz. O foro apropriado para responder a acusação de um crime que viola o bem público, como o estelionato, deve ser público também.

Por falar nisso, todas as vezes em que você saiu de um jornal, sempre saiu atirando, mostrando suas razões e denunciando os motivos, que você considerava injustos, de sua demissão. Entre esses motivos, você nunca fez menção à calúnia, injúria e difamação. Você era demitido por questões internas do jornal, que em determinado momento dispensava sua valiosa colaboração. Não o acusaram de crime algum. Dentro da rotina comum a qualquer empresa, seja de comunicação ou não, os jornais formalizaram a discordância (certa ou errada, eventual ou permanente) de suas opiniões com a linha do jornal.

Assunto ‘pessoal’

Gilmar Mendes, comentando um caso alheio, emitiu uma opinião injuriosa contra mim, atribuindo-me um crime, o de estelionato. Reagi, como me competia, com uma crônica aconselhando-o a considerar estelionatários os constituintes de 1988, que fizeram a lei e os cálculos para as indenizações; os mais de cinco mil anistiados que já receberam a indenização; o ex-presidente FHC, que regulamentou o dispositivo constitucional; a Comissão de Anistia e o próprio ministro da Justiça, todos cúmplices do crime que me foi atribuído. Daí o título que dei à crônica: ‘Formação de quadrilha’.

Reclama você que usei de espaço do jornal para me defender. Por que não? Meu caso transcendeu ao foro pessoal, passou a ser uma questão discutida na imprensa, no rádio, na TV, em centenas de e-mails que rolaram na internet.

Como é sabido, ‘um juiz só deve falar nos autos e depois de examiná-los.’ Principalmente um juiz do STF, que mais cedo ou mais tarde pode vir a julgar determinada ação. Como qualquer cidadão, ele pode opinar sobre o Palmeiras, o tsunami na Ásia, a saúde do Papa. Mas em matéria de direito, somente nos autos, mesmo assim se houver auto e se o auto for distribuído à sua competência. Ora, não há nenhum auto sobre a questão. O prejulgamento de um magistrado é falta grave que desclassifica moral e profissionalmente qualquer juiz.

Descendo agora ao trivial variado. Faço crônicas assinadas em jornais e revistas há 50 anos. Muitas e muitas vezes, tratei de assuntos pessoais e até íntimos, que só a mim interessava, sem qualquer relação com a vida do país, do povo, da moral, da justiça, das criancinhas que passam fome.

Uma delas, publicada na mesma FSP, republicada em vários jornais do país, está hoje transcrita em dezenas de antologias e livros escolares. Foi quando Mila morreu, a mesma Mila de quem você foi uma espécie de avô, sendo ela filha de Brigitte, a setter que você também amava. Não podia haver assunto mais ‘pessoal’ do que este.

Escolhido entre tantos

Ao receber a agressão criminosa de Gilmar, poderia ter processado o juiz, não o fazendo por três motivos:

a) Fui preso seis vezes, respondi a oito IPMs e a 12 processos variados, sempre por delitos de opinião. Infelizmente, sei como esses casos são processados e julgados;

b) O injuriador tem foro especial, todos sabemos que os colegiados cultivam o inarredável ‘esprit de corp’;

c) Não sendo bacharel em direito, que pudesse advogar em causa própria, dificilmente encontraria um advogado disposto a entrar em ação contra um membro do STF.

Bem verdade que, após a injúria do Gilmar, recebi mensagens de muitos advogados, alguns deles ex-juízes em condições de advogar, colocando-se à minha disposição para, sem cobrar honorários, processar o Gilmar.

Fiquei sabendo que a ida dele para o STF motivou uma ação popular contra a sua idoneidade. O jurista Dalmo Dallari, naquela ocasião, publicou um artigo em que demolia a moral e o saber jurídico do ex-advogado do governo FHC. Tal artigo teve imensa repercussão. Senadores pediram vistas do processo na comissão que aprovaria o nome dele, mas o rolo compressor do presidente da República que o indicara para o STF funcionou mais uma vez. Gilmar foi pago pelo serviço prestado ao governo anterior, quando abafou a CPI da Corrupção, fato exaustivamente comentado pela imprensa.

Violência cobrada

Meu caro Dines:

Eu poderia estranhar que sendo tantos os jornalistas que receberão a indenização, alguns com valores iguais e até maiores do que a minha, jornalistas bem mais ilustres do que eu, somente o meu nome tenha sido escolhido pelos colegas de profissão para a pretendida execração pública que, aliás, não se consumou.

Apesar do muito que me criticaram e difamaram, estou com a agenda cheia de compromissos. Até o final de março, serei patrono de duas turmas de formandos em Comunicação e duas de formandos em Letras. Parece que os universitários não cultivam o hábito de ler jornais, não levando em conta os bons conselhos que você costuma dar para melhorá-los.

Outro pormenor do seu artigo que desejo esclarecer. Não me habilitei à indenização porque perdi empregos. Demiti-me, realmente, de um jornal por pressão política, e por pressão política tiraram abruptamente do ar uma novela que escrevia para TV-Rio. Não morri de fome, apesar de ter o mercado de trabalho fechado para mim durante anos, obrigando-me a deixar a literatura para fazer adaptações de clássicos para a Ediouro (minha editora habitual, a Civilização Brasileira, estava fechada, ou melhor, demolida pelos tratores do exército).

Foram mais de 50 adaptações e traduções, inicialmente assinadas com pseudônimos, só bem mais tarde com o meu próprio nome. A maioria delas ainda está em catálogo.

Fora do meu estilo e vontade, trabalhei no Grupo Bloch, onde você também trabalhava, mas observando o compromisso de não escrever sobre os assuntos que me interessavam.

Não morri de fome nem dormi sob viadutos. O pior que me aconteceu, neste departamento, foi plantar ‘semillas’ na Ilha de Pinos (Cuba).

Não foram os empregos perdidos que motivaram a decisão de me habilitar à Comissão de Anistia. Perder emprego é um acidente na carreira de qualquer profissional. Por isso ou aquilo, com justiça ou sem ela, é sempre um acidente. Cabe ao demitido procurar outra forma de ganhar a vida.

Cobrei a violência que atingiu minha família. Minha mãe morreu chamando pelo meu nome, sabendo-me na clandestinidade, refugiado numa fazenda da família do Márcio Moreira Alves.

Herdeiro e sucessor

Em abril de 1964, em represália a uma crônica que escrevi no ‘Correio da Manhã, tive a casa depredada. Colegas de jornal, avisados do atentado contra mim, correram para minha casa, providenciando a retirada de minha família para local seguro, retirada que foi negociada com os militares pelo Edmundo Moniz, nosso redator-chefe, mas com a garantia de que eu continuaria em casa, esperando a expedição punitiva cujos membros já haviam isolado as esquinas da rua Raul Pompéia com a Júlio de Castilho e a Rainha Elisabeth. A violência foi registrada e condenada em editorial de primeira página no Correio da Manhã. E foi transcrito no Washington Post, sob o título ‘One man opposition’.

Dias depois, minhas duas filhas menores (12 e 9 anos,) foram retiradas da sala de aula, no Externato Atlântico, na rua Raul Pompéia. Três oficiais da Marinha, à paisana, foram buscá-las, dizendo para a diretora que elas corriam perigo e eles estavam ali para protegê-las. Ao empurrar a minha filha maior para dentro de seu carro, um dos oficiais avisou: ‘Vamos tirar hoje…’ e usou uma palavra que me dispenso de repetir.

O seqüestro e o estupro não se consumaram porque a diretora do colégio, pedindo a identidade dos oficiais e não sendo atendida, tomou nota da placa do carro, que ainda não era fria — o movimento de 64 estava em seus começos.

Dines, você é pai de duas filhas.

Sendo impossível quantificar a revolta de um pai, tenho repetido que se dependesse de mim, e não da Constituição, eu teria exigido mais. Como você não ignora, o Estado atual é herdeiro e sucessor do Estado que durante 21 anos viveu em concubinato, sob teto comum, com o regime de arbítrio instalado em 1964, tornando-se legalmente meeiro de seus créditos e débitos. O abraço de sempre do

Cony



Alberto Dines responde

Se o colunista Cony escreve sobre a morte de sua cadela na página nobre do seu jornal, a questão enquadra-se na esfera das suas relações com os leitores. Se é isto que esperam, nada têm a reclamar. Mas se o colunista Cony usa o mesmo espaço para manter uma querela que envolve um assunto estritamente pessoal, a questão enquadra-se na esfera das suas relações com o jornalismo. Justifica-se a reclamação deste Observador.

Se um ministro do STF em entrevista ao Globo critica o colunista, cabe a ele recorrer ao Globo para exigir a publicação de uma resposta. São os leitores deste jornal – e não os da Folha – que devem ter acesso aos dois lados da questão. Se O Globo recusasse este comezinho direito a um cidadão, a questão deixaria de ser do interesse pessoal do jornalista para converter-se em matéria de interesse público.

Para justificar-se, o jornalista Cony recorre a um argumento no mínimo vicioso: acusar este Observador de ter usado a imprensa todas as vezes em que foi demitido de jornais. Este Observador perdeu o emprego quatro vezes por ter expressado opiniões ou tomado atitudes que desagradaram aos donos dos jornais em que trabalhava.

Com a pretensão de dono da verdade, Cony minimiza essas opiniões ou atitudes como ‘questões internas do jornal’. Cinismo, puxa-saquismo, erro crasso ou mentira deslavada. Foram demissões políticas que configuram cerceamento da liberdade de expressão. Duas delas durante o regime militar (uma, na sua Folha, no mesmo período, outra mais recentemente). Nem por isso este Observador exigiu do contribuinte qualquer reparação pelos danos sofridos.

O jornalista deve arcar com os riscos inerentes à sua profissão – seja no caso de seqüestros, agressões ou perda de emprego.

Este Observador ‘saiu atirando’, sim, mas nos espaços públicos apropriados – no caso da primeira demissão da Folha, no Pasquim; na segunda, neste Observatório da Imprensa. E como a Folha injuriou-o e difamou-o, recorreu à Justiça. E ganhou na primeira instância.

Quanto mais escreve sobre esta indenização mais se atrapalha o colunista Cony. Fez a opção que lhe ditou a consciência. Agora agüente as conseqüências.

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Jornalista