Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carta ao Rei Roberto Carlos

Prezado Rei: é com toda a reverência devida às sumidades que me dirijo a vossa majestade através desta carta. Mas vou avisando, para não ofendê-lo: faço-o com liberdade. Desde a proclamação da República, o Brasil coroou dois reis (excluídos os que o Chacrinha mandou para o trono): Pelé e vossa majestade. Rei Roberto, o Único, fez, gravou e cantou mil canções, por alto. Rei Pelé fez mil gols e algumas canções, registradas em disco. Vossa majestade possui uns 50 milhões de súditos e reivindicou (entre tantas outras coisas…) um milhão de amigos. Pelé deve ter mil amigos e seis bilhões de fãs pelo mundo. Por fim, na última quarta-feira, quando foi derrubada a ditadura sanguinária das biografias autorizadas e foi ao lixo o último (oxalá) entulho da censura às artes no Brasil, o rei levou uma goleada, e não foi Pelé: 9 a 0. Terminou, assim, a longa campanha capitaneada pelo seu time: o time do liberticídio (uso a palavra em homenagem ao Mautner em sua última coluna), que também é o time da indústria dos processos, dos nababos invejosos, dos herdeiros gananciosos.

Comparar vossa majestade a Pelé baseado em números é divertido, mas não leva a conclusões objetivas. Já no campo das ideias, há algo objetivo a observar: se Pelé disse uma ou outra bobagem do alto de sua realeza (a ponto de Romário, o reizinho, ter afirmado que, calado, era um poeta), o que dele fica, até o momento, mesmo, é sua obra futebolística, e tudo indica que esse status não mudará. Já vossa majestade, que não é gago nem nada, vem ladrilhando uma estrada que, de brilhante, só tem mesmo o caráter pecuniário.

Sua obra, no que toca a tudo aquilo que não toca na canção, vem se resumindo a uma cruzada de expurgos. Antes mesmo da campanha para exterminar os biógrafos brasileiros, vossa majestade já perseguia qualquer tentativa de se lidar com sua figura pública que saísse do exclusivo espectro do desejo de cristalizar seu narcisismo como verdade absoluta. Dentro da tese de que o indivíduo é o “dono” (palavras suas) de sua própria história, que não permite versões.

Compositores que reclamaram direitos ao julgarem suas criações “capturadas” por sua corte foram descartados, desprezados, massacrados por seus recursos judiciais. Mais recentemente, um biógrafo que ousou contar sua vida num trabalho honesto e quase 100% laudatório foi demonizado e acabou, exausto (tal foi o erro do escritor), fazendo um acordo permitindo que os exemplares da obra fossem recolhidos das livrarias, como no tempo do regime militar, fazendo eco às fogueiras nazistas de obras degeneradas e aos índex da Inquisição.

Como se diz, o demônio está nos detalhes, tão pequenos, e tão corrosivos. No caso, corrosivos da memória, da construção da História, do imaginário coletivo e de outros valores inexoráveis da Democracia. Nessa empreitada, vossa majestade carregou outros reis, doravante não nomeados com o título, mas tão ou mais importantes, mais complexos, mais ricos no sentido latente. Unidos no movimento Procure Saber, Gilberto Gil (com quem vossa majestade deixou de cantar, grosso modo, por considerar sua conexão com a simbologia do candomblé coisa do capeta), Caetano Veloso, que enrolou seus caracóis nas suas equivocadas areias, e até Chico Buarque, tão aguerrido defensor das liberdades. Mesmo sem querer (assim acredito), vossa majestade terminou por enredá-los numa teia perversa da qual, feliz e sabiamente, souberam se desvencilhar a tempo, recusando a tentação de tão sanguíneo e corruptor cálice, afastando-se da velha esparrela do troca-troca de interesses.

Peço desculpas por mencionar o diabo, possivelmente em deselegante desconsideração à sua fé, que respeito. Mas ninguém está livre dele: queira ou não, vossa majestade encarnou uma força do mal, e talvez ainda esteja dominada em parte por ela. Cuidado!

Sabemos que seus esforços por inibir os biógrafos, em especial o autor de sua excomungada biografia, como já declarou seu advogado, continuarão, valendo-se da fraqueza do autor da mesma, que estava mal assessorado ao ter assinado o malfadado acordo.

Espero, sinceramente, que vossa majestade perca mais esta batalha, e que fique claro que o acordo em questão foi celebrado sob as leis de exceção que permitiram que tamanha violência fosse cometida em seu reino.

E não venha vossa majestade evocar privacidade. Ela vem sendo invadida, sim, pelos governos, sedentos de espionar a vida alheia ou em países onde a imprensa não é livre. De resto, são vossa majestade e seus áulicos e seguidores que vêm invadindo o direito privado de escrever, apurar, relatar, criar e contribuir para enriquecer (no sentido abrangente) a cultura brasileira.

Por fim, gostaria que vossa majestade visse este texto como modesta e minúscula biografia de sua ética singular. E que visse também esta crônica como um tipo de zoação. Todo rei merece uma zoada, e todo mundo quer que o rei fique nu, coisa que, mais cedo, mais tarde, sempre ocorre. O rei está nu e não está morto. Vida longa ao rei!, com um milhão de biografias nas ruas. Pois, apesar de vossa majestade, hoje há de ser, de novo, um novo dia.

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Arnaldo Bloch é colunista do Globo