De onde menos se espera é que não sai nada, já dizia o Barão de Itararé, tendo ou não inventado a tirada certeira.
Novo secretário-geral da famigerada Confederação Brasileira de Futebol, Walter Feldman havia se notabilizado pela relevante sugestão apresentada como deputado federal: a introdução do pôquer como jogo nas escolas públicas.
De pátria de chuteiras a pátria do carteado, já pensou?
Que nada mais inspirado saísse de tal cachola era o esperado, mas o neocartola excedeu-se: com o intuito de barrar legislação que tenta moralizar um pouquinho a administração do futebol, o ex-secretário de Gilberto Kassab e agora operador de Marco Polo Del Nero escreveu artigo desvairado atacando o blogueiro Juca Kfouri, insultando o jornalismo e esbanjando intolerância.
O texto do cartola foi publicado domingo (17/5) na Folha (para ler, basta clicar aqui).
O arrazoado do auxiliar do continuador de José Maria Marin, aquele que sucedeu Ricardo Teixeira, o herdeiro político de João Havelange, tentou responder a coluna de Juca Kfouri veiculada no mesmo jornal (leia neste link).
Jornalista incômodo
A despeito da defesa que faz de si e do patrão, o texto de Walter Feldman trai diversionismo. Lá pelo fim, ele pontua: “Juca e eu estamos em campos opostos. Ele gosta de medida arbitrária. Eu, do debate democrático”.
Eis a questão central. A CBF articula lobby no Congresso para barrar medida provisória de março que “institui o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro”.
Embora com limitações, a medida com força de lei desincentiva o – repare no eufemismo – uso privado que dirigentes muitas vezes fazem do patrimônio de entidades esportivas.
O pessoal do Bom Senso apoia a MP, a CBF se opõe. Os campos estão claros. Essa é a cruzada da cartolagem, embalada pelo chilique do secretário-geral de Del Nero.
Feldman ataca o jornalista ao se referir a inexistentes “ofensas pessoais que Juca Kfouri pratica”.
Kfouri anotara: “Feldman é uma figura singular na vida pública nacional. Basta dizer que trocou o braço direito de Marina Silva, da ‘nova política’, pelo de Marco Polo Del Nero, da velhíssima”.
A observação do colunista é objetiva, procedente e jornalística, pois o secretário-geral é figura pública e há interesse público nas ações da entidade que controla o futebol e a seleção.
Não há “ofensa pessoal”.
A crítica seria injusta, embora legítima, se o novo comando da CBF equivalesse a novos valores. Não é o caso.
Considere-se recente reportagem de O Estado de S. Paulo que recupera informações conhecidas e acrescenta outras: contrato celebrado ainda na gestão de Ricardo Teixeira concede às empresas organizadoras de amistosos da seleção poderes sobre a convocação.
Contrato da “velha” CBF.
Mas que foi defendido pela “nova” CBF de Del Nero e Feldman, nesta nota.
Mais detalhes do velho-novo procedimento da entidade estão aqui.
O subordinado proclama, em seu artigo: “O presidente Marco Polo Del Nero assumiu em 16 de abril pronto para dar uma arrancada modernizadora para o futebol brasileiro”.
Não é fato e seria surpreendente: o capo da CBF fulgura como protagonista da cartolagem desde os tempos em que era vice-presidente da Federação Paulista de Futebol capitaneada por Eduardo José Farah.
O Farah!
Em seguida, Del Nero exerceu por anos a presidência da FPF.
Mais tarde, assumiu como o segundo de Marin na CBF.
Que “arrancada modernizadora” ele ofereceu como bambambã das carcomidas gestões Farah e Marin?
Será que a “arrancada modernizadora” começou com Del Nero e Marin comprando apartamentos de luxo, santa coincidência!, no mesmo prédio da Barra?
Walter Feldman diz: “Tenho aversão à intolerância”.
O tom truculento que empregou demonstra o contrário.
Ele é propagandista de quem, Del Nero, foi apontado por uma revista como veterano membro do violento Comando de Caça aos Comunistas – ainda é tempo de o presidente da CBF negar.
Del Nero, o favorito de Marin, o então deputado que bradou contra o jornalismo da TV Cultura pouco antes de o diretor de jornalismo da emissora, Vladimir Herzog, ser preso e morto na tortura.
Exemplos de tolerância?
No terreno mais objetivo, Feldman proclama que, “se [um clube] atrasar salário, perde pontos”.
No mesmo domingo, Juca Kfouri explicava, com eficiência de tridente barcelonista: “Mas, atenção, o que a CBF chama de fair play financeiro é para inglês ver, porque depende de denúncia de atleta. Na Federação Paulista de Futebol não funcionou e na CBF não funcionará. Ou você acha que os clubes que estão participando do Brasileirão estão em dia com suas obrigações? Agora, imagine o que aconteceria para um jogador corintiano que denunciasse o clube. Não pisar mais no Corinthians, ou ter de contratar segurança para andar em São Paulo, seria o de menos. Nenhum outro clube lhe daria emprego, porque os cartolas, em regra, também são corporativistas”.
Mais claro – e honesto – impossível. Por isso Kfouri incomoda.
Ideias incômodas
O secretário-geral insulta o jornalismo ao sugerir que espírito crítico seja sinônimo de torcida contrária: “Juca é contra o ‘fair play’, como é contra tudo o que acontece no futebol. Dentro e fora de campo, desmerece vitórias e comemora insucessos com mais vigor do que qualquer adversário. Eu vejo magia nos campos. Ele vê bruxarias. Eu acho que futebol é paixão. Ele acha que é rancor”.
Digo com a experiência de repórter que cobriu a CBF por muitos anos: parece o Ricardo Teixeira falando.
Ressurge a velha ladainha de poderosos contrariados com o escrutínio público, democrático e jornalístico: queixam-se de que, se o jornalismo publica que há uma epidemia de meningite em curso, é porque pretende sabotar a saúde pública; se revela os Papéis do Pentágono, serve ao “inimigo”; se difunde notícias sobre a rendição do Japão, só pode ser traição ao imperador; se escarafuncha a corrupção, é porque odeia o país; se denuncia a tortura em Abu Ghraib, é coisa de amigo de terrorista; se mostra a roubalheira no esporte, torce contra a amarelinha.
A esse discurso, Teixeira, atual morador de Boca Ratón, juntava dezenas de processos, em nome próprio ou da CBF, contra Juca Kfouri.
Cada processo valeu ao processado como um diploma de integridade jornalística.
Walter Feldman cometeu: “Eu amo futebol. Ele [Juca Kfouri], talvez, simplesmente, não ame”.
Eis, aí, outro ataque a quem, Juca Kfouri, vibra e sofre com o futebol – ainda que não vibrasse e não sofresse, não deixaria de ser o jornalista decente que é.
E insulto aos jornalistas, aos quais cabe ser sobretudo fiscal do poder, e não bajulador de cartola.
Nonsense intolerante: para contestar ideias incômodas, o secretário-geral busca a desqualificação pessoal do crítico.
Só faltou o “ame-o ou deixe-o”.
O Barão de Itararé sabia mesmo das coisas.
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Mário Magalhães é jornalista