O complicado Eugène Ionesco, com todos os seus absurdos e estranhas alusões, costuma ser mais fácil de entender do que os misteriosos desígnios e critérios do editor(a) da nobre Página 3, que abriga a seção “Tendências/Debates”, no primeiro caderno da Folha de S.Paulo.
Com um intervalo de pouco mais de duas semanas o privilegiado espaço do jornalão foi oferecido a dois cartolas com currículos no mínimo questionáveis – tanto na esfera esportiva como política – para desancar um brilhante jornalista naquele momento internado numa UTI.
Um foi, o outro é, deputado federal. Walter Feldman já envergou inúmeras camisas (do PCdoB ao PSDB e PV), agora carrega a maleta do presidente Marco Polo Del Nero, na condição de secretário-geral da CBF, afiliada brasileira da FIFA.
Andrés Sanchez, ex-presidente do Corinthians, agora superintendente de futebol, já usou diversas cartolas na mesma e emérita CBF. Está no seu primeiro mandato como deputado federal na bancada do PT-SP, o que lhe garante certas vantagens em caso de indiciamento.
Walter Feldman deu azar: dias depois de investir contra Kfouri na página mais prestigiosa do jornalão foi obrigado a calar-se – certamente por modéstia – quando o ínclito José Maria Marin, vice-presidente da entidade, foi convidado a manter a dieta de chocolates suíços num xilindró com vista para os Alpes. Agora, Feldman curte um silêncio monacal diante da real possibilidade do seu chefe, Marco Polo del Nero, ser convidado para uma temporada na Papuda ou numa prisão americana com as despesas pagas pelo FBI.
Boa briga
Os impropérios do cartola corintiano foram publicados no dia 4 de junho, em plena temporada de escândalos Padrão FIFA. É possível que o autor (ou quem assina o texto) escape de um processo por difamação, mas nunca se sabe: a bola da vez, afinal, é amarela com estrelinhas azuis. Ser cartola já foi ofício de prestígio. Agora é melhor usar a camisa do Barça para não levar uns cascudos de algum corintiano exaltado.
Mas o que causa espanto e repulsa são os postulados e princípios morais que levam um jornalão de prestígio internacional como a Folha a oferecer a sua página mais distinta como quintal para o exercício do direito de resposta. Se os atingidos pelas denúncias de Juca Kfouri têm algo a acrescentar que o façam na mesma Página 3, mas no “Painel do Leitor”, onde outros reclamantes – até mais qualificados – costumam contestar o jornal e articulistas.
Qual a razão do tratamento VIP a cartolas insatisfeitos? Compreensível caso fossem dignatários do Opus Dei, mas pelo menos um deles jamais poderia fazer parte da ilustre prelazia. A deferência, portanto, deve ter motivos que escapam às comezinhas considerações éticas ou deontológicas. Eduardo Cunha e Renan Calheiros, presidentes das duas casas legislativas federais, têm sido tratados com extremo rigor – como merecem – mas nunca lhes foi oferecida a privilegiada Página 3 para responder aos detratores e eleitores.
O mistério se esclarece ao lembrar que a Folha sempre foi fascinada pelo recurso de fazer barulho: não pelo teor do que publica, mas pelo artifício infantil de provocar discórdias a qualquer preço. Esta maneira arrevesada de forçar repercussões acaba transformando o jornal numa disfarçada rinha de galos ou mero octógono para disputa de UFC.
Não é assim que se aumenta a circulação e credibilidade, sobretudo porque, ao colocar a equipe de articulistas na defensiva e em desvantagem, o jornal compromete a própria imagem.
Se o jornal pretende exibir sua musculatura, que enfrente os concorrentes. Neste exato momento, uma briguinha com o Grupo Globo a propósito da transmissão de jogos e temas correlatos daria à Folha um formidável empurrão. Este é o tipo de barulho que agrada os leitores e anunciantes, estimula os colaboradores e faz do jornal um legítimo defensor do interesse público.
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