Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Caso PC e o papel do jornalismo


1. O Centro de Ensino Superior Arcanjo Mikael de Arapiraca (Cesama) programou para abril passado um evento ao qual deu destaque. Tanto que, em seu site, sem contar as fotos de um vestibular, um trote e um desfile de 7 de Setembro, é o único evento citado. Batizado de ‘1º Seminário Cesama de Direito Processual Penal’, prometia ‘uma profunda análise sobre as mortes de Paulo César Farias e Suzana Marcolino (…). Pretendemos, de forma imparcial, discutir o caso com a participação de grande [sic] nomes do nosso mundo jurídico’.


Eis os palestrantes, a falar entre a noite de uma quinta-feira e a tarde da sexta:


a) José Fragoso, apresentado como advogado e professor universitário em Maceió. O que o site não informa: no processo do Caso PC, Fragoso defendeu o ex-deputado Augusto Farias e até hoje representa antigos seguranças de PC que um juiz de Alagoas mandou a júri sob acusação de duplo homicídio.


b) Tereza Dóro, advogada e professora universitária. O que o site não diz: Dóro defende o médico-legista Fortunato Antônio Badan Palhares.


c) Badan Palhares, apresentado como legista e professor universitário.


d) O advogado Mendes de Barros.


e) E, primeiro na lista de divulgação, o jornalista Joaquim de Carvalho. Antes de sua palestra, haveria o lançamento do livro de sua autoria Basta! Sensacionalismo e farsa na cobertura jornalística do assassinato de PC Farias (Editora A Girafa, São Paulo, 2004). Assim mesmo: uma obra contra o sensacionalismo com um ponto de exclamação no título.


A direção geral do Cesama é de Cícero Torres Sobrinho. A instituição pertence, informa o site, à família do seu diretor. Informo eu: Cícero Torres Sobrinho é o delegado de polícia que presidiu em 1996 o inquérito sobre as duas mortes ocorridas em junho daquele ano. Como Badan Palhares (no laudo que coordenou) e Joaquim de Carvalho (em reportagem de 1996), concluiu que Suzana matou o namorado e depois se suicidou.


Por telefone, a secretaria do Cesama me informou que o seminário ocorreu, com ‘casa cheia’ e a presença de todos os convidados anunciados, inclusive Joaquim de Carvalho. Registro, para o balanço jornalístico incompleto (o processo ainda corre na Justiça de Alagoas) da cobertura das mortes de PC Farias e Suzana Marcolino:


a) Aceitar a participação em evento sobre o Caso PC em uma instituição de ensino superior dirigida pelo delegado que presidiu o inquérito sobre o Caso PC em 1996 não é manifestação de independência jornalística.


b) Aceitar a participação em evento sobre o Caso PC ao lado do perito que coordenou um dos laudos sobre o Caso PC também não é manifestação de independência jornalística.


c) Idem sobre aceitar a participação em evento com a presença da advogada que defendeu Badan Palhares quando o legista foi investigado sobre sua atuação no Caso PC.


2. Já antes do lançamento, o semanário Extra, de Maceió, festejou o livro de Carvalho. Um diretor da publicação, Gabriel Mousinho, escreveu:




‘O livro de Joaquim, (…) se não cicatriza feridas marcadas no coração de Augusto Farias (irmão de PC indiciado por duplo homicídio em 1999), pelo menos lhe traz a sensação do reconhecimento de que tudo não passou de uma farsa orquestrada (…)’ (cf. texto que o acima assinado publicou neste OI em 21/06, item 23).


Em 1999, Gabriel Mousinho foi o porta-voz de Augusto Farias no Caso PC. Em 2002, a poucas semanas de Augusto perder o direito a foro privilegiado, por causa da sua derrota na tentativa de reeleição a deputado federal, o Ministério Público Federal pediu ao STF que arquivasse o inquérito que investigava o parlamentar. O chefe da Procuradoria então era Geraldo Brindeiro, a quem a imprensa se habituou a chamar de ‘engavetador-geral da República’ (mais dados em meu texto no OI de 07/06, item 21) [ver remissões abaixo].


Em linha-fina, o Extra decretou: ‘Livro desmistifica versões fantasiosas sobre a morte de PC Farias e põe um ponto final na polêmica’ [veja aqui].


Um jornalista que marcou não só a trajetória do Extra, mas as suas características editoriais, foi João Marcos de Carvalho, dono de ‘extensa folha policial em São Paulo, nada relacionado a eventuais crimes de imprensa, mas, sim, a estelionatos’, conforme descrição publicada neste Observatório.


Não especulo sobre motivações nem faço insinuações, ao contrário do que Carvalho fez em seu livro (até identificar fontes alheias, sem prova alguma, ele identifica). Mas trato do método jornalístico do Extra, ao alardear o ‘fim da polêmica’. É o mesmo de Joaquim de Carvalho. O que leva à questão central que eu procuro debater neste artigo: a diferença entre imprensa e Justiça.


3. Em 1996, Carvalho assinou reportagem intitulada ‘Fim de caso’ (Veja, 7 de agosto, págs. 32 a 38). A capa, dedicada à matéria, recebeu o título ‘Caso encerrado’. Nove anos depois, nem a Justiça nem o jornalismo (com exceção do Extra de Maceió, evidentemente…) pensam que houve ‘fim de caso’. Há desdobramentos judiciais e jornalísticos. Em 2004, Carvalho lançou um livro, em 2005 deu entrevistas e escreveu artigo sobre temas relativos a um processo em aberto. Será que ele pensa que o caso foi mesmo encerrado há nove anos? Até agora, não disse. Comporta-se como se não houvesse a assertiva de 1996.


Em sua reportagem, Carvalho não apenas relatou o laudo de Badan Palhares. Assumiu com entusiasmo a condição de defensor do laudo. Antes mesmo do relatório do inquérito do delegado Cícero Torres Sobrinho, da manifestação do Ministério Público de Alagoas (que divergiria do delegado) e da Justiça do Estado (idem), decretou a palavra final, em manifestação de arrogância lamentavelmente comum no jornalismo e em jornalistas. O que deveria ser reportagem virou sentença e propaganda. Exagero?


Carvalho encampou todas as teses de Palhares e seus coordenados. Anos depois, um magistrado da Justiça de Alagoas qualificou em despacho o trabalho comandado pelo legista como ‘imprestável’ (Folha de S.Paulo, 14/03/2000, pág. 1-10, Ed. São Paulo). Não cabe ao repórter julgar, mas informar, inclusive apresentando opiniões – alheias – divergentes. Em seu livro, Carvalho sonegou os termos de tal despacho.


Carvalho editorializou a reportagem de 1996, ao se pronunciar sobre a ação (ou falta de) policial em curso. ‘O inquérito de Alagoas, pelo que tem de exemplar, pode acrescentar alguns capítulos importantes à literatura forense do Brasil’, redigiu (pág. 37 da matéria). A essência do gênero jornalístico da reportagem é informar, não opinar. O inquérito ‘exemplar’ foi descartado pela própria polícia em 1999. Não cabe ao repórter julgar qual é o certo, o trabalho policial de 1996 ou 1999. Mas obter informações objetivas que permitam ao leitor/ouvinte/espectador (e mesmo às autoridades) formar juízo.


No empenho de incensar Badan Palhares, Carvalho escreveu que o legista foi ‘responsável pela emissão de 4.000 laudos – nenhum contestado’ (pág. 37 da reportagem). Laudos, como peça de processos judiciais, muitas e muitas vezes são contestados. Não quer dizer que estejam certos ou errados. Mas são contestados.


Mais Carvalho, sobre o herói do seu livro: ‘(…) Badan Palhares, do alto de vinte anos de uma carreira celebrizada pela técnica’ (pág. 37 da reportagem). No Caso PC, numerosos legistas manifestaram críticas às conclusões de Badan. Ocorreu a mesma coisa em outros episódios. Não cabe ao repórter julgar subjetivamente o mérito dos personagens de suas apurações.


Mais grave, Carvalho se refere ao ‘trabalho de Badan, de identificação da ossada do carrasco nazista Josef Mengele’ (pág. 37 da reportagem). O trabalho de Palhares no Caso Mengele foi produzir uma máscara facial depois que outros profissionais fizeram o principal: identificaram o cadáver como sendo o do nazista (cf. OI, 07/06). Se tiver dúvida, pode consultar o que disse Palhares em depoimento à CPI do Narcotráfico, em 1999.


4. Ao decretar o ‘fim do caso’ em 1996, Joaquim de Carvalho não agiu como jornalista. O repórter pode e deve jogar luz sobre os fatos, contribuir para combater injustiças. Mas o seu instrumento é a informação, não a caneta de delegado, promotor ou juiz.


Um dos principais motivos da crise contemporânea do jornalismo é a confusão sobre o seu papel: a alma do jornalismo é a informação. Quando o jornalismo se pretende Justiça, não informa. Ou informa deturpando. Jornalista não é juiz nem justiceiro.


Pior: como o livro de Carvalho comprova, ao se investir das funções de Justiça, o jornalismo assume compromisso com sentenças. Se surgem informações que contradizem a sentença, o jornalista às vezes se sente compromissado em defender a ‘sentença’ que ‘proferiu’. Para isso, tenta desqualificar as informações que contradizem suas ‘teses’. Função de repórter é reportar fatos e versões, e não elaborar, quando faz reportagem, teses.


Não é à toa que em seu livro Carvalho praticamente não oferece espaço às opiniões de delegados, promotor, juiz e peritos que contradizem as conclusões que o jornalista sustenta. Sem pluralismo, não há jornalismo independente. Como no seminário ‘imparcial’ em Arapiraca (AL), em que todos os palestrantes tinham a mesma opinião sobre o Caso PC.


Na cobertura da qual eu tive a chance de participar em 1999, na Folha de S.Paulo, houve amplo espaço para a manifestação de posições antagônicas. Não só em reportagens (ouvindo o ‘outro lado’ e publicando informações cuja origem eram os partidários da versão de Badan Palhares), mas em artigo.


Por falar em partidários, eis a síntese: repórter não é parte. Sua função é obter e tornar públicas informações. Se elas ajudam uma ou outra parte, é outra questão. Não é preocupação do repórter. Seu compromisso é com a melhor versão possível da verdade (copyright Carl Bernstein). O repórter não deve nortear o seu trabalho pela possibilidade de a informação ajudar a defesa ou a acusação.


5. Para entender por que a instituição dirigida pelo delegado Cícero Torres Sobrinho anunciou com pompa a presença de Joaquim de Carvalho ao lado de Badan Palhares, da advogada do legista e do defensor de Augusto Farias e de quatro réus: o livro de Carvalho faz julgamentos. Talvez isso explique sua inclusão na lista de ‘nomes do nosso mundo jurídico’ no seminário de Arapiraca.


Como se fosse um sentença (ou alegações da defesa), Carvalho escreveu, ironizando um, este sim, magistrado: ‘Sua excelência mandou inocentes ao banco dos réus’ (pág. 13 do livro). Trata-se do juiz Alberto Jorge Correia, o responsável pelo processo das mortes de PC e Suzana. Atenção: ainda não houve julgamento. O juiz Correia pronunciou quatro réus acusados de duplo homicídio. E Carvalho, o repórter, trata os quatro pronunciados como ‘inocentes’. Nunca, em qualquer matéria, eu ou os colegas com os quais trabalhei no Caso PC chamamos os réus de culpados ou inocentes. Por um motivo: não somos juízes. Carvalho é?


6. Uma das expressões históricas de autoritarismo e totalitarismo é se considerar representante do monopólio da verdade e porta-voz das opiniões, crenças e desejos alheios. Carvalho, na pág. 162 do seu livro: ‘Quem ouviu o depoimento das primeiras pessoas que viram PC Farias e Suzana mortos não tem dúvidas sobre o que aconteceu’.


Como assim? Carvalho ousa falar em nome de todas as pessoas. Pressupõe que todos tenham de pensar ou pensem como ele. Não se trata mais de arrogância, somente. Quando se pretende unanimidade compulsória, entra-se no terreno do fascismo e do stalinismo.


7. Em seu livro (págs. 160 a 162), Carvalho também faz juízo de valor sobre o delegado Cícero Torres Sobrinho, o diretor da faculdade de Arapiraca que levou o jornalista ao seminário sobre o Caso PC. O policial foi acusado pelo Ministério Público Federal de contrabando de armas oriundas do Paraguai. O livro sonega ao leitor os motivos alegados pelo MPF para acusar Torres Sobrinho no que Carvalho descreve, com despudorado eufemismo, como ‘operação ousada’.


Carvalho faz a seguinte afirmação (págs. 161 e 162): ‘No Estado, a compra [de armas] de Porto Juan Cavalero [talvez Carvalho quisesse escrever Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia] não era segredo, mas o caso só virou um escândalo depois que o caso PC foi reaberto’.


O Caso PC foi reaberto após a publicação de reportagem da Folha em março de 1999. Em 1998 (27/01, pág. 1-4, Ed. Nacional) o jornal noticiava o escândalo do contrabando. Outras publicações, emissoras de TV e rádio, também. Ao tentar associar as dificuldades de Torres Sobrinho no episódio das armas à reabertura do Caso PC, Carvalho amalgamou as datas.


8. Sonegar informação ou informar com imprecisão para ocultar fatos pode ser tão grave quanto, objetivamente, falsear informações.


Na pág. 109 do seu livro, Carvalho escreve, com dedicação:




‘A partir daí, Badan Palhares transformou-se em um marco brasileiro na história da medicina legal. Antes dele, legista no Brasil era associado à ditadura e à fraude em laudos que encobriam a tortura nos porões das Forças Armadas. Depois do caso Mengele, perícia virou trabalho nobre e Badan, quase uma unanimidade. Ele era para a medicina legal o mesmo que Ivo Pitangy para a cirurgia plástica e Adib Jatene para a cardiologia. Atuou no caso Chico Mendes, no suicídio do vice-governador da Paraíba, Raimundo Asfora, no massacre do Carandiru e na carnificina de Eldorado de [sic] Carajás’.


Carvalho ocultou qual foi a atuação de Palhares nos episódios do Carandiru e Eldorado do Carajás (cf. OI, 21/06, item 16).


Na revista Caros Amigos, o repórter Cláudio Júlio Tognolli escreveu, sobre o laudo de Palhares usado pela defesa dos PMs que participaram do massacre dos sem-terra [íntegra aqui]:




‘Eviscerar uma farsa científica, produtora da idéia de que não houve massacre em Eldorado do Carajás, requer a análise desse laudo, usado pelos 150 PMs réus como ‘piéce du resistance’ em suas defesas na Justiça. Badan é taxativo: não existiu qualquer caso de execução sumária. E, sustenta, teriam sido mortos os trabalhadores rurais sem-terra pelos disparos e golpes de seus próprios companheiros’.


Segue Tognolli, no texto ‘Uma farsa científica contra os sem-terra’:




‘Afirmando que 42% das vítimas morreram com ‘extensos ferimentos produzidos por armas brancas’, Badan sustenta que os policiais envolvidos no massacre não tinham qualquer responsabilidade pelos ferimentos, ‘já que as forças policiais de Belém, há muito tempo, aboliram essas armas como meio de combate’. Badan vai mais fundo: ‘(…) Não há quaisquer sinais de execução nos corpos dos 19 mortos’.’


A reportagem de Tognolli cita declaração do legista Nelson Massini, cujo trabalho contribuiu para a acusação contra os policiais militares. Massini comentou afirmação de Palhares, segundo o qual houve ‘confronto’:




‘Isso é uma aberração. Não houve confronto. Os sem-terra morreram imobilizados covardemente. Sem possibilidade de defesa, tocaiados’.


Um dos grandes vilões do livro de Carvalho é Nelson Massini. Outro é Ricardo Molina, co-autor de um laudo de imagem mostrando que a PM atirou primeiro contra os sem-terra. No episódio, foram mortos 19 manifestantes. Nenhum PM morreu.


Talvez a reportagem de Tognolli – e o laudo de Palhares – esclareçam por que Carvalho, ao perfilar o legista, não contou o papel que ele teve no processo de Eldorado do Carajás. Entre os heróis de Carvalho no livro estão (além de Palhares e Torres Sobrinho) Romeu Tuma (que encomendava laudos a legistas que ocultavam mortes por tortura durante a ditadura militar; documentos à disposição) e Jean Manzon (que produzia e dirigia documentários de louvação à ditadura).


Carvalho também não trata do caso das ossadas de Perus e da manifestação dos movimentos de familiares de mortos e desaparecidos políticos sobre o trabalho de Palhares na identificação de cadáveres. Por que o silêncio?


9. Carvalho citou em seu livro (pág. 151) o episódio em que Palhares ‘examinou o cadáver [de um adolescente] e concluiu que não era o do filho do bancário [do Maranhão]’. Citou de passagem. O suficiente para escrever que o ‘assunto’ foi ‘desenterrado em 1999 por uma CPI que produziu muita fumaça e fez pouco fogo. Foi a CPI do Narcotráfico, tocada por deputados do baixo clero da Câmara Federal’.


Eis o método: citar, não explicar e desqualificar. Ou seja: faz-se juízo de valor para, de antemão, absolver uns e condenar outros. O ‘absolvido’, sempre, é Badan Palhares.


O episódio apurado pela CPI foi o seguinte: em 1988, um garoto de 13 anos, José Antônio Penha Brito Junior, desapareceu no Maranhão. Ele era filho de um gerente do Banco do Brasil. O gerente negara um empréstimo a um deputado hoje preso por participação no assassinato do menino. Foi achado um corpo. Palhares emitiu laudo afirmando que não era o de Brito Junior. Em 1999 e 2000, a CPI investigou a suspeita de que o corpo fosse do jovem.


Notícia do Globo Online de 16/06/2004, 17h25:




‘O médico-legista Badan Palhares foi indiciado pela polícia do Maranhão. Ele é suspeito de ter emitido um laudo falso no caso do menino José Antônio Penha Brito Junior (…). O caso foi reaberto durante as investigações do crime organizado no Maranhão. Badan teria emitido o laudo falso para proteger o deputado [José Gerardo]. Badan Palhares atestou que a ossada encontrada na Praia de Itapereí, no município de Alcântara, não era a do garoto. Os peritos maranhenses e uma empresa contratada para examinar as ossadas descobriram que elas são de Brito Junior’.


Ainda o Globo Online:




‘De acordo com a delegada Katerine Silva Chaves, a suspeita ocorreu após a polícia de São Luís receber o malote com a ossada de Brito Junior. ‘Ele fez a troca das ossadas quando levou o material para Minas Gerais, por isso o DNA não confirmou ser o de Brito Junior. Quando recebemos o malote, havia mais ossos do que o necessário: tinham 25 vértebras, e uma pessoa só possui 24. Então desconfiamos que ele poderia ter falsificado o exame. Nós temos provas concretas de que Badan falsificou o exame de DNA. Talvez ele possa ser indiciado por formação de quadrilha’.’


O Estado do Maranhão, 18/06/2004, pág. 8:




‘Os ossos enviados pelo médico-legista Fortunato Antônio Badan Palhares para exames de DNA na Universidade Federal de Minas Gerais, em 1996, que identificaria o corpo do adolescente José Antônio Penha Brito Junior, desaparecido em 19 de junho de 1988, pertenciam a uma pessoa com mais de 40 anos. A conclusão é do legista Wanderlei Souza da Silva, do IML (…).’


Palhares nega as acusações. Sua versão sobre o caso pode ser lida no seu site, clicando aqui.


Joaquim de Carvalho não é Badan Palhares, apesar de assumir as posições do legista em todos os casos citados no livro. Carvalho desqualificou as suspeitas da CPI sobre Palhares, batendo o martelo, em vez de informar. A questão, nesse ponto, não é se procede a suspeita da polícia do Maranhão contra Palhares. É outra: jornalista não é juiz. E, se fosse, não poderia dar a sentença antes do fim do inquérito policial que apurava o caso. Quem opina antes da sentença são advogados e promotores. Carvalho é defensor constituído de Badan Palhares?


10. Pois Palhares saiu em defesa de Carvalho (OI, Canal do Leitor, 22/06, 10h50):




‘É necessário ser corajoso para escrever o que [Joaquim de Carvalho] escreveu, pois há certas verdades que machucam, que ferem, mas necessitam ser ditas enquanto as pessoas estão vivas, pois do contrário sempre ficará a impressão de que se tinha medo de apresentar um fato real, para não se expor’.


A propósito de pessoas vivas, Palhares não se manifestou sobre o abjeto relato de Carvalho sobre a morte do jornalista Ari Cipola (OI, 21/06, item 21).


Sobre mim, o legista escreveu no OI:




‘(…) Fico muito triste com as leviandades colocadas pelo sr. Mário Magalhães, que não conhece nada de perícia médica e muito menos do Caso PC’.


Concordo com Palhares: não sou médico, muito menos legista. Sou jornalista. Também não sou juiz. Faço reportagens.


Por que Palhares não apresentou um só exemplo de leviandade?


Desafio-o a esclarecer:


a) Palhares afirma que mediu a altura de Suzana Marcolino; em que momento, no vídeo com que o legista documentou a necropsia que fez de Suzana, ele a mediu? Sou jornalista: assisti ao vídeo e não vi medição (detalhes em OI, 07/06, item 11; e em OI, 14/06, item 13). Carvalho também afirma que assistiu, e não conta quando foi feita a medição.


b) Palhares diz que tabelas que projetam a altura de uma pessoa com base no comprimento de alguns ossos não se aplicam a brasileiros. Poderia dizer qual seria a altura de Suzana com base na tabela que o próprio Palhares emprega, conforme descoberta publicada na Folha (mais dados em OI, 07/06, item 12)?


c) Por que, no laudo original do Caso PC, não informou a altura de Suzana?


d) Por que, inicialmente, apresentou o vídeo da necropsia sem áudio?


e) Por que uma terceira equipe de peritos, que em 1999 analisou os laudos divergentes das duas equipes anteriores, se pronunciou tão criticamente sobre as conclusões do grupo coordenado por Palhares? Seus integrantes também ‘não conhecem nada de perícia médica’?


f) Por que sonegou em sua carta ao OI a informação de que já fui alvo de ação judicial da sua parte? Não seria mais transparente? Poderia também informar o conteúdo da sentença. Se preferir, eu mesmo informo.


Palhares disse que eu me ‘iludo’ com ‘meias verdades’. Em artigo no OI (14/06), Joaquim de Carvalho também se saiu com essa: eu fui o ‘jornalista que usou meias verdades’. ‘Meias verdades’: que terminologia coincidente… Não dá nem para disfarçar?


11. Nos dois artigos divulgados neste Observatório (07 e 14/06), descrevi exaustivamente aspectos técnicos relacionados com a cobertura jornalística do Caso PC. A cobertura feita em 1999, base para os artigos citados, foi desenvolvida com fundamento no estudo dos laudos produzidos, nas versões contraditórias das partes, dos envolvidos e de não-envolvidos.


No OI (Canal do Leitor, 22/06, 12h45), um leitor que se apresenta como Paulo Bandarra, médico (não informa se é legista, pediatra, dermatologista ou, quem sabe, perito em balística) de Porto Alegre, faz uma série de afirmações peremptórias. Não esclarece se conhece os laudos sobre o Caso PC, os autos do processo. Mas sai em defesa de Joaquim de Carvalho. E de Badan Palhares, por supuesto.


Para me condenar, Bandarra palpita:




‘Dizer que ela [Suzana, ao ser baleada] não estava sentada é por demais tentar adivinhar a cena do disparo. Ela não estava sentando sobre a perna? Ela não estava meio levantada? Ou existem provas de que suicidas não se matam de pé, semi-erguidos ou sentados sobre a perna?’.


O médico não tem idéia do que fala. Quem faz tal afirmação (de que Suzana estava sentada) é Badan Palhares. E o jornalista que abraçou sua causa, Joaquim de Carvalho (Veja, 07/08/1996, pág. 34): ‘A trajetória da bala prova que Suzana estava sentada, com os dois pés sobre o colchão, e o tiro não poderia ser dado por alguém em pé’. Para que Suzana ‘suicida’ (sem deixar digitais na arma, nem ter nas mãos resíduos emitidos no disparo da munição com que ela e PC foram mortos…) se encaixasse na trajetória (conhecida) da bala, Palhares descreveu o que ele qualificou de ‘posição anômala’. Bandarra saiu em defesa de Palhares, mas, involuntariamente, condenou uma assertiva do legista.


Em outra mensagem (OI, 23/06, 11h45), Bandarra afirma:




‘Interessante que Mário Magalhães tenha muita fé no Ministério Público de Alagoas e no Judiciário neste caso, mas desacredite totalmente da polícia que levantou as primeiras evidências de que fora apenas um crime passional. Aposto com Magalhães uma caixa de cerveja de que o processo em Alagoas não dará em nada’.


Não aposto, não. Não sou apostador nem palpiteiro. E quem disse que eu penso que o contrário é o mais provável? Talvez o sr. ache que, com mais de uma centena de absolvições e nenhuma condenação em definitivo, Fernando Collor tenha exercido a Presidência da República com mãos limpas.


Jornalista não tem que ter fé. Tem que suar na apuração e informar. A polícia de Alagoas teve duas conclusões distintas, em 1996 e 1999. Ao repórter, cabe esclarecer o que é possível. Exemplo: tanto Palhares e seus colaboradores como a segunda equipe de peritos afirmaram: se a altura estipulada para Suzana no laudo coordenado por Palhares estiver errada, tudo estará errado (na discussão sobre suicídio). Com numerosas fotos, mostramos a verdade sobre a altura. Isso o jornalista pode fazer, e não precisa ser perito em balística. Nunca fiz juízo de valor sobre policiais, promotor ou juiz no caso PC. Quem faz isso é Carvalho.


12. Em seu livro, na entrevista ao Observatório da Imprensa na TV (31/05) e no artigo que escreveu no OI (14/06), Joaquim de Carvalho empenha-se em desqualificar os jornalistas (inclusive um já morto) que levantaram informações que contradizem as afirmações de Badan Palhares. Ao exibir sua arrogância, insulta sem limites. Para justificar seu livro, numa egotrip risível, cita Émile Zola (será que ele sabe do que está falando?) e a equipe do Caso Watergate (não conseguiu escrever corretamente o nome da sra. Graham, OI de 14/06, mas precisão, como já visto, não é o seu forte).


Carvalho tinha um belo material nas mãos: o laudo coordenado por Badan Palhares. O que era uma das versões possíveis (peritos não têm procuração de Deus), transformou-se em verdade incontestável. Carvalho nunca perdoou quem apurou informações que questionavam Palhares. Sentia-se ele mesmo questionado. Juntou sua sorte à de Palhares. Ao atuar como juiz, em vez de repórter, alinhou-se para a eternidade com o legista. Como seu livro mostra, não só no Caso PC. Fico pensando como deve ser angustiante acompanhar o noticiário, cada nova denúncia, o coração na mão. Que vida desgraçada. É possível que aí esteja a raiz de tanto ressentimento, rancor e ódio.


Um dos reconhecimentos que mais honraram a Ari Cipola, Paulo Peixoto e a mim, a equipe da Folha na cobertura do Caso PC em 1999, foi um comentário de Alberto Dines, no balanço jornalístico sobre aquele ano [‘O ano que começou mal e mal acabou‘].


Dines:




‘Março/abril – Reportagens da Folha reabrem caso PC Farias – Trabalho exemplar de dois repórteres – Mário Magalhães e Ari Cipola – derruba laudos periciais e inquéritos policiais. Investigação cuidadosa, paciente, exemplo da diligência e do esmero que devem acompanhar as ações de jornalistas. Lançamento seguro, sem truques de marketing. Grande momento do jornalismo brasileiro (Observatório, 5/6)’.


Tantos anos depois, o Caso PC está longe de ser encerrado.

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Jornalista, é colunista da Folha de S.Paulo