Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Causalidades e brutalidades

Um dos princípios mais invocados, seja em filosofia universitária, seja na denominada ‘filosofia de botequim’ é o da razão suficiente, segundo o qual ‘nada existe sem uma razão de ser’. Com efeito, cada acontecimento, pouco importa se o valore positivamente ou negativamente (no popular, pouco importa se seja ‘bom’ ou ‘mau’), o ser humano sente uma ânsia de explicar de onde ele veio e, mais do que isto, se aquela causa seria necessária e suficiente para determinar a ocorrência daquele acontecimento ou se outros dali decorreriam. Todos, em maior ou menor medida, vêm a fazê-lo, porque, para poderem tomar as decisões inerentes ao seu viver, precisam saber qual a possibilidade de elas virem a se concretizar no ambiente em que se movem, seja ele físico ou virtual.

Existem, contudo, causalidades e causalidades. Pode ser estabelecido um nexo entre uma causa que tenha que ver com o efeito em questão e um nexo que sequer possa ter relação com o efeito. Por exemplo, tomando em consideração a matéria assinada por Otávio Cabral (‘Em que os militares miram’, Veja, São Paulo, v. 40, nº 2.036, p. 134, 28 de novembro de 2007), a impressão que se tem é que a representação presente na sociedade a respeito do problema da violência e do crescimento das organizações criminosas em uma suposta ausência de um tratamento mais duro para com os delinqüentes, a ponto de se mostrar majoritário entre civis e militares entrevistados o entendimento de que a tortura, em determinados casos, seria admissível. Não deixa isto – partindo do pressuposto de que não tenha havido qualquer manipulação nos dados – de ter uma premissa implícita, e que é freqüentemente alimentada por casos como o do pequeno João Hélio: a de que quem viola os direitos humanos das pessoas de bem perde todos os seus direitos inerentes à condição de pessoa. Deste modo, cada ‘perigoso bandido’ – tendo ou não cometido algum crime, pouco importa, no caso, quando se trata de dar satisfação à sociedade assustada – que cai nas mãos dos agentes estatais encarregados de exercer legitimamente a violência, a sociedade vem a se sentir vingada com tudo o que acontecer com tal indivíduo – porque, a esta altura, a própria condição de pessoa já deve ter perdido.

Dois fatos lamentáveis

Pois bem. Se fosse verdadeira tal premissa, teríamos, necessariamente, de considerar a China vermelha como modelo a ser seguido: qualquer que seja o delito, punição com pena de morte; os advogados não têm como função defender o que seja apontado pelo Estado como criminoso, mas simplesmente convencê-lo a confessar. Sem contar o fato de que a estrutura do Judiciário em relação à matéria criminal teria de ser considerada uma absoluta inutilidade cara, porque se entenderia que, como o criminoso, ao lesar sua vítima, não a submeteu ao devido processo legal, não haveria sentido em garantir a ele o devido processo legal. Parece estranho que os setores que menos gostariam de ser identificados com a China vermelha, no particular, sustentem discursos que defendam uma aproximação com um tal sistema onde os próprios direitos de defesa sejam aniquilados em nome da tranqüilidade da sociedade.

Curiosamente, esta mesma premissa vem a explicar dois fatos tão lamentáveis quanto o que ocorreu com o pequeno João Hélio: o caso da morte de Jean Charles de Menezes – no qual jamais deixarei de tocar, por conta do seu potencial em termos de fato justificador da própria idéia de proteção aos direitos humanos e por ser freqüentemente deixado ao largo pela mídia – e o da pequena que foi encerrada numa cela com trinta homens que abusaram dela o quanto puderam, no Pará.

Tendência nefasta

O primeiro era o típico exemplo do jovem ordeiro, de acordo com o típico leitor da Veja: não estava se dirigindo a qualquer tipo de manifestação de protesto, a algum partido político, mas sim ao seu trabalho. Entretanto, teve a má fortuna de ser confundido com um terrorista por agentes da Scotland Yard – cuja eficiência é louvada em todo o mundo – e, ao final, ser por eles morto, no ano de 2005. Se fosse, realmente, um terrorista, a morte, nas mesmas circunstâncias, seria anunciada como um verdadeiro thriller policial, com direito a todas as peripécias que fazem as delícias de quem se excita com as películas de ação ‘enlatadas’. Quanto à menina aprisionada com vários homens dentro de uma cela na delegacia de polícia em Abaetuba/PA, em história narrada em detalhes na mesma edição da revista por Leonardo Coutinho (‘Presa, estuprada e torturada’, Veja, São Paulo, v. 40, nº 2.036, p. 54-55, 28 de novembro de 2007), trata-se de um fato que só se pode explicar a partir da mesma premissa que está por trás do assassinato de Jean Charles: ‘Preso perde a condição de pessoa e deve virar objeto.’ Corriqueiro embora, veio a ocupar as páginas dos jornais, como salientou Lígia Martins de Almeida na última edição do Observatório da Imprensa [‘A menina paraense que virou notícia‘]. Trata-se de um caso de abuso que em cada rincão, como observa André Petry, e que não é de hoje que ocorre (‘Mas tudo bem’, Veja, São Paulo, v. 40, nº 2.036, p. 120, 28 de setembro de 2007). Mas por que, então, veio a se tornar notícia algo que já deveria ter sido denunciado há tempos e averiguado? Isto é: algo que já deveria ter-se tornado matéria, e não notícia? Simplesmente pela tendência nefasta que se tem verificado no Brasil nos últimos tempos de tornar cada desgraça um pretexto para a construção de palanques [‘De previsibilidades e torcidas organizadas‘].

Os ‘cães do Senhor’

Ao invés de se ir diretamente às causas do problema, estabelece-se como premissa um dado que não guarda ligação com ele – é indiferente, para a ocorrência da tragédia do metrô de São Paulo no início deste ano, que o governador seja do PT, do PSDB, do DEM, do PSTU ou de qualquer outro partido, bem como para a ocorrência do caos aéreo, ou do próprio acidente da TAM, que o país esteja sendo governado pelo PT, pelo DEM, pelo PP, pelo PMDB, pelo PSDB ou qualquer outro, porque qualquer que fosse a sigla a governar, seriam as condutas que deveriam ser avaliadas na apuração das responsabilidades, consoante afirmei em outra oportunidade [‘Acidente, pressões e culpados‘]. É sempre bom recordar que não são nem a autoria nem a utilidade de uma proposição que a fazem, em si, verdadeira ou falsa, mas, sim, a correspondência dela com os fatos. O furor destrutivo dos fanáticos de Tanger, no quadro homônimo de Delacroix, não se dirige apenas contra os transeuntes, mas também contra eles mesmos – há um deles, em traje azul-escuro, que, no auge do transe, cai ao solo, mordendo o próprio braço e prestes a ser pisoteado pela multidão que avança em frenesi.

Já foi dito em outra ocasião que ‘o pronunciamento do sr. Luiz Weis [‘Idéias que levam ao inferno‘ e ‘Tolerância zero com a incivilidade‘], corretamente observando que se concordar com a prática do crime seria o retorno à barbárie, isto não significa que combatê-lo seria a defesa da civilidade, dado que existem formas e formas de se o combater. E, certamente, a mais civilizada não seria a do ‘Esquadrão da Morte’. Também o pronunciamento de Alberto Dines [aqui, aqui e aqui] vem a se colocar, enfrentando o renascimento do espírito dominicano – aqui, no sentido por ele mesmo referido, de quando Dominic (Domingos) de Guzmán, diante do fortalecimento da heresia cátara (ou albigense), criou a Santa Inquisição, no início do século 13, cujos integrantes, além de serem chamados ‘dominicanos’ em homenagem ao fundador de sua Ordem, faziam, por si mesmos, o trocadilho ‘Domini cane’, isto é, ‘os cães (podem ser tanto de guarda como de caça, pois a ferocidade dava no mesmo) do Senhor’ – no sentido de que, se ninguém merece ser roubado – quando nada, porque, constitucionalmente, está a qualquer pessoa garantido o direito de propriedade – ou atingido em sua integridade tanto física quanto moral – também sob proteção constitucional –, por outro, ninguém está autorizado a incitar à violência, seja contra os patrícios, seja contra a ralé’ [cf. ‘Delacroix e a violência dos debates sobre a violência‘].

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Advogado, Porto Alegre, RS