Esta calamidade sabemos quem produziu: tem assinatura e impressões digitais. O senador José Sarney (PMDB-AP), que no seu mandato anterior como presidente do Senado procrastinou ao máximo a criação do Conselho de Comunicação Social, uma década depois sai das sombras onde gosta de esconder-se para assumir ostensivamente o papel de coveiro do nosso primeiro fórum legislativo para a comunicação social.
Da primeira vez, Sarney contrariou a Constituição, deixou-a capenga ao impedir por todos os meios a criação do CCS e, quando já não podia adiá-la novamente, nomeou um Conselho absurdo, inviável. A maioria dos indicados de então sequer havia sido sondada e recusou-se a participar do trambique.
Agora, quando Sarney percebeu que o órgão poderia transformar-se num efetivo instrumento de pressão para promover as mudanças em nossa mídia, desfaz o que foi feito ao longo de dois anos e, ainda por cima, compromete decisivamente qualquer ação legislativa futura.
Concessões públicas
José Sarney é o coronel da mídia do Maranhão-Piauí, espécie de Hearst da caatinga. Em ambientes decentes, onde prevalece o decoro, o senador deveria considerar-se impedido de montar um Conselho de Comunicação Social. Há um evidente conflito de interesses que um parlamentar minimamente preocupado com os ritos e a decência deveria evitar. Sarney não tem estes pudores. Foi escolhido pelo governo federal para isso. Os éticos do PT precisavam de alguém para fazer o jogo sujo que não ousam fazer. José Sarney é o homem para isso.
O CCS foi armado para não funcionar; mesmo assim, ao longo do primeiro mandato dos conselheiros, criaram-se paradigmas importantes. O mais importante deles: o CCS provou que o Congresso necessita de um órgão técnico e isento capaz de assessorá-lo nas questões relativas à concessão de canais de rádio e TV, sobretudo para alertar os representantes do povo contra o perigo que representa, para todas as instituições democráticas, a perigosa concentração da mídia no Brasil.
A composição da fase-1 do CCS, em meados de 2002, resultou de uma intensa articulação política no Senado. Toma-lá-dá-cá com final feliz, distante do que pretendiam os constituintes de 1988, mas indício de que o processo de regulamentação estava em curso.
O senador Ramez Tebet (PMDB-MS, então presidente do Senado, delegou o assunto a senadores legitimamente preocupados com a situação da mídia e da imprensa brasileira. Entre eles destacaram-se Artur da Távola, Aloísio Mercadante e José Fogaça. Ao dar posse aos conselheiros, em junho de 2002, Tebet foi incisivo: uma de suas tarefas do CCS seria a melhoria do conteúdo da televisão, matéria que diz respeito ao Congresso já que todas as concessões são por ele aprovadas.
Indicações desprezadas
A composição da fase-2 do CCS foi uma catástrofe. Não houve articulação nem negociação, José Sarney fez o que queria sem prestar contas a ninguém. Nem ao PT, entalado com o problema da base de apoio ao governo no Congresso.
Sarney não mexeu na quota dos sindicalistas (jornalistas, radialistas, artistas e técnicos de cinema), nem na quota dos empresários (rádio, TV, jornal e engenharia de comunicações). Sarney foi na jugular – os cinco representantes da sociedade civil. São esses que podem fazer a diferença, são esses que podem acabar com impasses e conduzir o CCS acima dos interesses corporativos.
Para começar: Sarney não reconduziu o primeiro presidente do Conselho, um dos responsáveis pelos acertos da primeira fase, o jurista, especialista em direito da comunicação, José Paulo Cavalcanti Filho [veja sua entrevista nesta edição do OI]. A desculpa dos assessores de Sarney é cínica – Cavalcanti Filho não queria continuar. A verdade é que José Paulo Cavalcanti Filho preferiu desistir de mais um mandato quando percebeu o tsunami de lama que Sarney preparava para paralisar o Conselho.
Em seguida, Sarney tratou de evitar que o CCS mantivesse dentro da representação da sociedade civil pelo menos um jornalista profissional, comprometido publicamente com a liberdade e a qualidade do nosso jornalismo. Na fase-1 havia dois conselheiros (Carlos Chagas e este Observador, que deixaram o CCS quando terminou o prazo legal do mandato).
Sarney indicou Arnaldo Niskier, que não entra numa redação há pelo menos três décadas. Desapareceram os jornalistas profissionais na quota da sociedade civil do Conselho de Comunicação Social. No lugar deles lá está o secretário das Culturas de Anthony Garotinho, lobista das universidades privadas e lídimo representante da banda podre da Academia Brasileira de Letras.
Por que razão Sarney não promoveu o suplente Sidnei Basile (dono de um invejável currículo profissional em jornais e revistas) a conselheiro efetivo? Sarney detesta homens de bem, gente com princípios. Razão pela qual também desprezou as indicações dos jornalistas Roberto Muller Filho e Artur da Távola, que dariam ao CCS a legitimidade de que tanto carece.
Votação formal
A manobra seguinte para controlar a representação da sociedade civil foi a transferência do conselheiro Roberto Wagner, até então representante das empresas de TV na qualidade de vice-presidente da Rede Record, para a quota da sociedade civil. Roberto Wagner é pessoa decente, advogado competente, conhece os problemas políticos e legais relacionados com a comunicação, mas está comprometido com os interesses do empresariado da TV. A metamorfose arquitetada por Sarney só pode ser qualificada com o bordão do ancora da própria Record – ‘isto é uma vergonha!’
Depois de tantos passes de mágica, as benções do céu. Indispensável a graça divina, Sarney sabe que a presença de um religioso católico confere sempre uma aura de respeitabilidade. Dois, mais ainda.
Representando a sociedade civil de uma república formalmente secular e uma população dividida majoritariamente entre diversas confissões cristãs, Sarney escolheu João Monteiro de Barros Filho, idealizador da Rede Vida, e o bispo D. Orani João Tempesta. Ambos de S. José do Rio Preto (aparentemente não existem no país outros municípios católicos). D. Orani conhece os problemas da comunicação social, seu correligionário parece ser um idealista, mas nem o missionário evangélico George W. Bush ousaria enfiar religião num órgão técnico e necessariamente isento.
O senador José Sarney não é tolo: sabe que a presença de dois representantes católicos no CCS pode acionar a ira dos evangélicos, cujo apoio parlamentar é indispensável para a sobrevivência do governo Lula. Sabe que precisará oferecer aos seguidores de Lutero uma compensação de peso.
Significa que a escolha do próximo presidente do CCS já foi feita – falta a votação formal. Pelos estatutos terá que ser escolhido na quota da sociedade civil. E para manter o equilíbrio na guerra santa precisará agradar às emissoras evangélicas.
Portanto, o vencedor é…
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Este Observatório da Imprensa tem uma dívida com o senador Sarney e com suas trapalhadas para abortar o Conselho de Comunicação. Não fosse ele e não fossem elas, nossa primeira edição, em abril de 1996 poderia ter sido pífia. Clique aqui para conferir.