O jornal O Globo comemorou em sua página 2 de quinta-feira (6/11) o fato de estar sua primeira página da véspera, noticiando a vitória de Barack Obama, entre os jornais do mundo inteiro expostos pelo Newseum – palavra que é um trocadilho infame mas foi escolhida para batizar em Washington o que pretende ser uma espécie de museu (Museum) da notícia (news), dedicado ao jornalismo (ver aqui).
Volto depois ao nome infeliz e à instituição idem. Mas vale a pena comentar o que disse o jornal na coluna ‘Por dentro do Globo‘, a mais recente versão do que, no tempo da velha Gazeta Esportiva chamava-se ‘Oba, oba! Isto sim é que é jornal’ – bazófia provinciana publicada na primeira página, somando às façanhas de nossa seleção os feitos gloriosos do diário, como supostos recordes de tiragem.
No caso presente foi sintomático estender a bravata ao conjunto das organizações Globo, já que enfeitava a coluna a foto do guardião da doutrina da fé naquele império de mídia, Ali (‘Não somos racistas’) Kamel, ao lado do ‘Seu Boneco’ do Jornal Nacional, William Bonner, integrante supérfluo da laboriosa equipe que cobriu a eleição (só cabia a ele a missão simplória de passar a palavra, no ar, a um ou outro repórter de verdade).
Ali, Carter, Clinton. E ‘Hussein’?
Fiquei implicado com a celebração triunfalista de O Globo. Primeiro, por achar que o tributo era mais aos recursos técnicos da empresa, que se deu ao luxo de atualizar o resultado, divulgado tarde demais, em três primeiras páginas diferentes. As que circularam a tempo de pegar a distribuição normal certamente não tinham resultado definitivo da votação apontando vencedor – e para os demais, não se justificava o custo da espera.
Era então apenas uma primeira página para efeito de relações públicas, não um feito jornalístico. Mas houve ainda a decisão, insólita e de mau gosto, da manchete ‘Presidente Barack Hussein Obama’. No tempo em que eu fazia título no copydesk de O Globo, o lutador de boxe que ganhou o título mundial dos pesos pesados, o ‘bailarino’ que tinha sido Cassius Clay ao nascer, adotou como adulto o nome Muhammad Ali – e assim era aceito na mídia.
Mesmo depois, quando os eleitores americanos elegeram um presidente chamado James Earl Carter Jr., o jornal da família Marinho só o chamava pelo nome adotado por ele, Jimmy Carter. E bem mais tarde, em 1992, ao ser eleito o candidato cujo nome original era William Jefferson Blythe III (Clinton veio depois, era do padrasto), nas páginas de O Globo sempre foi (e continua a ser, até hoje) apenas Bill Clinton.
Que gênio do jornalismo teria decidido agora – e com que intenção – mandar o mancheteiro preferir aquele ‘Barack Hussein Obama’, que os jornais em geral não usam nem em textos, quanto mais como manchete, quando a opção normal é pela economia de batidas? Não sabia O Globo que aquele nome do meio, demonizado para preparar a invasão do Iraque, só é falado pelos odiadores do presidente eleito? E em especial os extremistas de talk shows do mais baixo nível?
Orgulho de ser único no mundo
Não afirmo que a intenção tenha sido ofensiva. Não vi antes textos ofensivos no jornal sobre Obama – nem na coluna pouco inspirada de Merval Pereira. Mas o oba-oba da página 6 celebrou a opção como positiva. Relatou com orgulho ter sido aquela primeira página mostrada várias vezes na CNN, ao mesmo tempo em que um locutor explicava que foi a única no mundo a incluir ‘Hussein’ no nome do presidente eleito.
Quanto à comemoração dos operosos Kamel & Bonner no Newseum (juraram ter sido a única primeira página de jornal brasileiro exposta), havia razão menos celebratória. Muitos diários retardaram o fechamento, à espera da confirmação, mas com a atual diferença de três horas entre os horários dos EUA e do Brasil ficara difícil – e, afinal, o novo clichê seria comprado por poucos (para um jornal pequeno, ironicamente, era mais fácil).
Volto, enfim, ao Newseum e à organização Freedom Forum, que o criou. Não morro de amores por eles. Em junho de 2001, em artigo para o Observatório da Imprensa (‘A história virada pelo avesso‘), expliquei por quê. O Newseum publicara então o livro Crusaders, Scoundrels, Journalists, organizado por Eric Newton, suposto ‘historiador’ do tal Newseum. Num dos microtextos do livro falsificou-se a verdade histórica sobre a morte, em 1979, do repórter Bill Stewart, da rede ABC (recontada corretamente em 1983, como ficção, no filme Under Fire, de Roger Spottiswoode, sobre a revolução sandista (ver aqui).
A fraude histórica do Newseum
Um soldado da Guarda Nacional do ditador Anastasio Somoza mandara Stewart, desarmado numa barreira, deitar-se no chão. Um colega do jornalista, de longe, observava. Filmou então, horrorizado, um assassinato a sangue frio, que chocaria os americanos. Os EUA tinham apadrinhado a ditadura somozista, que passava de pai para filho desde 1933, mas a cena contribuiu para apressar a queda do regime, com o triunfo sandinista.
Quem clicar na imagem acima verá a realidade, não a versão mentirosa do livro do Newseum/Freedom Forum, que atribuiu a atrocidade somozista aos sandinistas que lutavam contra a ditadura. Era tão submissa a conduta da mídia na era Reagan-Bush que não se diz que a CIA dirigia uma guerra secreta contra a Nicarágua. Mercenários ‘contras’, recrutados e armados pela espionagem, eram usados a partir de Honduras para atacar a Nicarágua (um pouco como Bush faz na Colômbia uribista, transformada numa espécie de Israel, para provocações à Venezuela, Equador, Bolívia etc).
‘Historiadores’ tipo Eric Newton ignoram o escândalo Irã-Contras, que expôs a venda de armas ao Irã e o desvio dos lucros para financiar a guerra dos mercenários ‘contras’, egressos da Guarda Nacional somozista. Aliás, é também uma piada o monumento do Newseum/Freedom Forum a jornalistas assassinados por ditaduras – como Stewart. Há uns 10 anos, li a lista em Nova York e tentei saber da organização por que o nome de Vladimir Herzog não aparecia. Não sabiam. Mas depois incluíram Herzog, só que na companhia do suposto mártir do jornalismo Alexandre von Baumgarten – agente do SNI morto em queima de arquivo da ditadura.
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Jornalista