Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Cena macabra na pequena ilha

A pequena ilha de Utoya, na Noruega, tem uma localização geográfica peculiar: fica dentro do lago Tyrifjorden, um dos maiores daquele país setentrional. Este lago fica no final de uma sequência de fiordes que adentram o território norueguês pelo sul do país. (fonte: seeiendom.no). Outra característica específica: pertence ao Partido Trabalhista, o maior do Parlamento norueguês. Lá, onde ocorreu o massacre do dia 23/7, o partido construiu um campo de férias para a Juventude Trabalhista Norueguesa. O partido é o maior da Noruega e, junto com outros partidos de esquerda e centro-esquerda, assegura um consenso progressista no país.

Por isso, desde o início a mídia europeia trabalhou com a hipótese de um atentado de motivação política que teria partido da direita radical. O ideário nefasto desta vem crescendo no país nórdico, ignorando brutalmente anos e anos de bem-estar social proporcionados pela frente social-democrata à população norueguesa. A direita vem crescendo: no Parlamento do país, já são 71 membros, contra 98 da coalizão governante. O Partido Trabalhista está em primeiro lugar, em número de representantes eleitos em 2009; em segundo lugar aparece o Partido do Progresso, liberal-conservador; e em terceiro o ultra-reacionário Partido da Direita. A rejeição aos imigrantes, as ideias antidemocráticas, o antissemitismo e o rancor anti-islâmico vêm engrossando as fileiras da direita reacionária da Noruega. Infelizmente, é uma tendência comum a todos os países escandinavos.

Apresentadores em transe

As primeiras imagens que vi foram as da BBC World, de madrugada: corpos espalhados pela ilha toda. Uma cena macabra que me trouxe de volta as imagens do morticínio da Guiana em 1978, no misterioso suicídio coletivo promovido pelo fanático religioso Jim Jones (quem poderá esquecer tal ignomínia, tamanha barbaridade?). Na pequena ilha da Noruega igualmente havia gente morta em todo lugar: no litoral, no interior, em cima de pedras… Estavam por toda a parte. Sobreviventes foram filmados tentando fugir a nado do inferno setentrional.

O The Telegraph, pela manhã do dia 23, informava um total de 84 mortos e apresentava o perfil de um suspeito: Anders Behring Breivik, 32 anos, louro, olhos azuis, segundo descrição de testemunhas que o viram vestido como policial. Na página do Facebook atribuída a Breivik, continua o periódico britânico, “ele descreve a si mesmo como cristão e conservador. Amante de caçadas e interessado em fisiculturismo e maçonaria”. O chefe de polícia, Syinung Sponheim, sugeriu uma “ligação com a direita e visões anti-muçulmanas”.

O choque do bombardeio de Oslo seguido do massacre na pequena ilha deixou todos atordoados. O horror de ver todos aqueles corpos foi demais para público e mídia, em igual proporção. Era horrível contemplar a cena. Por algumas horas, a sensação de atordoamento e espanto tomou conta da população, da audiência e da mídia. Havia muito horror no ar e muito pouca informação. O massacre horrorizou o mundo inteiro. Por algum tempo, os canais de TV da grande mídia pareciam aturdidos e atônitos. Os apresentadores pareciam em transe. Nos estúdios, olhares perdidos, a procurar orientação fora do foco das câmeras. O tempo parecia se arrastar. A informação chegava lentamente. Tudo o que podíamos fazer era contemplar os corpos.

Em busca de sentido

Aos poucos, com a população e imprensa a tentar encontrar sentido naquilo tudo, a razão começou a encontrar seu espaço. Mais informações chegavam. De acordo com The Guardian, no final da tarde, o sujeito, já preso desde a manhã e disposto a falar, teria se gabado de conexões com a extrema-direita do Reino Unido. O jornal relatou naquela altura 92 mortos, no bombardeio e na ilha. “O maior massacre perpetrado por um só autor”, como bem registrou o periódico. “O ex-membro do Progress Party (Partido do Progresso, e não ‘progressista’)”, continuou o jornal, “pouco a pouco foi radicalizando ainda mais suas posições contra muçulmanos, pessoas da esquerda e do cenário político do país.”

O noticiário norueguês VG (Verdens Gang) citou um colega de Breivik, que disse que “ele havia se tornado um extremista de direita aos 20 anos e era agora um forte oponente do multiculturalismo, expressando fortes visões nacionalistas em debates online”. A visão da primeira página do jornal norueguês espelha bem o horror que este homem fez a população de seu país viver: “Éramos entre trinta ou quarenta, quando ele começou a atirar”, disse uma testemunha. “Quando terminou, éramos cinco ou seis.” Uma linha telefônica foi criada para as famílias das vítimas do massacre. As manchetes, em caracteres enormes, assinalam a dor e as tentativas da população para encontrar algum conforto e apoio, em sua consternação. Temos que lembrar que a população da Noruega é pequena: não chega a 5 milhões de pessoas. O massacre de quase 100 pessoas provocou um impacto tão grande que paralisou o país.

A melhor abordagem, entretanto, foi a do Independent, que foi direto ao ponto: este não foi um atentado com assassinatos aleatórios. “Cada um que estava ali foi alvejado por suas ligações com o Partido Trabalhista Norueguês”, categoricamente explicou o jornal, sem rodeios. Também informou que Breivik entregou-se voluntariamente e que a polícia descobrira sua pequena propriedade, nos arredores de Asta, um vilarejo rural perto de Oslo. Um fornecedor de suprimentos agrícolas informou à polícia que seis toneladas de fertilizantes foram entregues à pequena fazenda do matador. A maioria deles é baseada em amônia: basta misturá-los com os produtos químicos certos e acrescentar um detonador e teremos um artefato com alto poder de destruição.

Show de horrores

“Um solitário com poucos amigos”, continuou o Independent, aprofundando o perfil do matador, “ele parecia passar muito tempo frequentando fóruns de extremistas de direita, de neo-nazistas e cristãos fundamentalistas”. Gostava de videogames violentos e declarou que seu programa favorito na TV é Dexter, o popular show de barbaridades da TV paga HBO, na Noruega. Aqui no Brasil, outro canal, o FX (da News Corporation…) exibe o bárbaro show de um assassino em série que “vinga” a sociedade trucidando e esquartejando outros tipos como ele. Dexter é um esquartejador “do bem”, trabalha para a polícia e só trucida e despedaça seus colegas “renegados”…

A nossa sociedade, a sociedade contemporânea, tem mostrado muita simpatia e tolerância com tipos malignos e perversos. A mídia apenas espelha isso. Mas a verdade é que hoje estamos mais tolerantes com ideias que simplesmente horrorizariam a nós mesmos vinte ou trinta anos atrás. Há uma tendência maligna dentro da sociedade e da mídia, que produz um programa que exalta um assassino de massas, onde ele aparece esquartejando outros assassinos. Por que um show como este tem uma audiência tão alta? Será que alguém acredita que a justiça contra assassinos deva ser feita de forma tão bárbara? Como podemos nos permitir assistirmos esquartejamentos em nossas salas, todas as semanas?

Algum protesto apareceu no início da série, como o apresentado pelo Parents Television Council, o Conselho de Pais e Televisão. Acabou ridicularizado e chamado de “cão de guarda” da TV, por Andrew Wineke, em seu artigo no The Gazette, de Colorado Springs, em fevereiro de 2008. Vale a pena ler o que o autor escreveu sobre o show de horrores, em sua matéria: “Por mais que sua falta de humanidade fique evidente dentro de seu anti-herói, Hall (o ator Michael C. Hall) acaba por fazer de Dexter uma figura simpática: o irmão, colega de trabalho ou namorado que nós todos adoraríamos ter.”

Os bandidos simpáticos

Notem que ele assume um fascínio por um tipo de bandido simpático, que pode viver do nosso lado. Posições como esta, corrupta, permissiva e cruel, representam um dos dois pilares que escoram o peso de criaturas como Breivik, o matador norueguês, neste mundo. O outro é a incapacidade aparente de reação por parte das forças democráticas, em toda parte, diante do crescimento da virulência e da violência da extrema-direita. Wineke só fez uma coisa boa: informou que o “Dexter” foi criado pela produtora que tem um passado meio “barra-pesada” de Los Angeles, a Showtime, e depois comprado pela CBS, uma das grandes da TV aberta nos Estados Unidos. O fato chamou a atenção do lobby dos pais, que prudentemente avisou a grande rede americana: “Vocês torcem pelos assassinos.” Agora o mundo todo assiste, em horror, ao assassino que já havia sido anunciado. E ignorado. Em outubro deste ano começará a sexta temporada da série.

Não estou a imputar toda a culpa pelo que ocorreu na Noruega a um programa de televisão. Seria pueril fazê-lo. Estou a condenar uma cultura que admira os bandidos simpáticos deste mundo. Uma cultura assim, que promove a espetacularização de massacres e desmembramentos, combinada com a ascensão das ideias ultra-reacionárias no planeta, alimenta um ambiente tolerante ao barbarismo e a crueldade. Estamos, irresponsavelmente ou ingenuamente, permitindo que, mais uma vez, ideias que há muito deveriam ter sido varridas da face da terra novamente mostrem sua face horrenda.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano e regional, consultor e tradutor]