Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cenas de uma guerra ilusória

Há mais de uma semana estamos assistindo ao festival de ‘cinema’ dos principais meios de comunicação brasileiros. Desta vez, no entanto, o filme não é de ficção, mesmo que carregue nos elementos espetaculares, movidos a tiros, imagens de policiais posicionados em conflito, ‘bandidos’ correndo em fuga. Enfim, típicas cenas de uma guerra que, apesar de não ficcional, é constituída por argumentos ilusórios.

Não sou especialista em violência, segurança pública ou qualquer coisa do tipo. Não tenho experiência profissional na área, tampouco pretendo ter. Mas nem por isso, enquanto sociólogo e professor da rede pública estadual, poderia me ausentar em refletir acerca dos últimos acontecimentos cariocas, festejados pela mídia como ‘momentos históricos de vitórias contra o crime’. Já sobre a mídia posso falar com embasamento, conhecendo suas peculiaridades internas e sua linha de trabalho geral.

Em primeiro lugar, uma guerra que pretenda seriedade contra o crime organizado e o tráfico de entorpecentes, além de visar à qualificação da segurança nacional, demandará necessariamente um conjunto de soluções, emaranhado nos diversos aspectos causais dos fatores a serem combatidos, ou seja, uma solução complexa para problemas complexos. Ao contrário, quando se acredita exterminar o tráfico somente atacando os indivíduos que habitam as favelas, seres humanos que optaram pelo crime como forma de sobrevivência, errada ou não, se reduz uma situação de grande complexidade – visto a continuidade no tempo e as relações sociais decorrentes – a sentenças de rara simplicidade. Fortalecido pela imprensa, nos mais variados veículos, o discurso que desempenha o papel de uma espécie de fascismo social se dissemina nos corações e mentes desse imenso Brasil.

É o braço repressor que se faz presente

Dispare uma bala de AK-47 quem nunca errou. De todo modo, uma leitura séria da questão da segurança pública neste país precisa, no mínimo, mirar seus projetos para alguns componentes centrais, isto é, focar as raízes dos problemas:

a) ok, as UPP´s consistem num projeto importante, de fato, retirando as facções criminosas das comunidades e ampliando o contato (a propósito, atenção para qual contato acontecerá e canja de galinha não faz mal a ninguém!) das polícias com a população;

b) as fronteiras, gigantescas, precisam ser controladas profundamente, através do Exército, que ao invés de lidar com civis, deveria trabalhar no seu objetivo legítimo, a defesa da soberania nacional;

c) enquanto uma vasta gama de favelas cariocas estiver nas mãos das milícias, ou de grupos desonestos das forças armadas, a legitimidade encontrada por Weber no uso do monopólio da força física do Estado se desmanchará por completo e, por consequência, ruirá uma suposta polaridade entre o Estado (repressor) e os ‘bandidos do tráfico’;

d) sempre me pergunto por que, em paralelo à participação do Estado como agente repressor nas periferias, o próprio Estado não assume seu caráter republicano e passa a concretizar políticas sociais de maior fôlego, nas quais estariam sendo garantidos direitos constitucionais historicamente negados a parcelas específicas da sociedade: moradia, alimentação, transporte, saneamento, saúde, lazer, emprego… Os caracteres do Estado de bem-estar social, aos moldes keynesianos, sem entrar no fundamental debate econômico, não estão na conta das ações fluminenses; é sobretudo o braço repressor do Leviatã que se faz presente;

Uma leitura míope das circunstâncias

e) a justiça, esfera de poder importantíssima, não pode ser considerada um exemplo de eficiência, boa fé e imparcialidade nas suas atividades cotidianas. Os altos escalões do judiciário mandam e desmandam conforme seus interesses pontuais, deveras entrelaçados ao poder econômico e político, portanto facilitadores dos famosos ‘delitos do colarinho branco’, na maioria dos casos finalizados em pizza;

f) por fim, o sistema prisional é uma questão para ontem, de urgência crônica, à medida que se converte de uma face ‘corretiva’ para uma ‘faculdade do crime’, na qual quem entra amador sai PhD. Se for para reeducar os sujeitos que atentarem contra as leis e a ordem, buscando a transformação destes, é imperativa uma mudança extensa nos presídios e cadeias.

Ora, se pensarmos como Durkheim, entendendo as sociedades de divisão do trabalho complexa, arraigada, na figura de um organismo saudável em que cada parte cumpre sua função, gerando assim uma solidariedade orgânica, de forte coesão social, então vigorará uma leitura míope das atuais circunstâncias. A divisão do trabalho no mundo ocidental capitalista avançado ocasiona mais itens ‘anômicos’ do que reflexos morais interessantes, principalmente sob a égide das teorias neoliberais ou neoclássicas da economia, que enxergam no Estado os males do funcionamento dos mercados e tentam dizimar a sua atuação em setores estratégicos.

Um risco imperdoável

Quero dizer que uma postura séria para com a segurança pública também envolve alternativas econômicas, a luta pela diminuição da ganância feroz dos lucros privados e a luta por uma sociedade que consuma menos e conheça mais. Um amigo me mostrou uma obra do cientista político Wanderley Guilherme do Santos, intitulada Ordem Burguesa e Liberalismo Político, que não li, a despeito de uma página. Naqueles parágrafos, dizia ser responsabilidade do Estado orientar a divisão do trabalho, deixando às instituições políticas a sua essência, o debate, as discussões, o aperfeiçoamento das desavenças, a modulação ideológica dos grupos sociais.

A rigor, pelas entranhas da mídia exala o fedor do preconceito, do abismo pré-fascista, da consolidação de um senso comum desinformado, simplista, beirando a irracionalidade. As cenas da guerra no Rio espelham um confronto ilusório, em que pesem os parcos acertos da iniciativa governamental, originados num certo governo anterior que ousou mexer em alguns vespeiros supracitados e terminou varrido sem piedade, depois de ameaçada a vida do representante da Secretaria de Segurança. No dia-a-dia, famílias estão sendo vitimadas pelo ranço de policiais despreparados (uma parte das corporações), malgrado se sintam protagonizando o lado ‘bom’ da guerra, com denúncias transmitidas pela televisão, banhadas de confetes e requintes de novela das oito.

Se o jornalismo e a ciência social possuem distintas percepções sobre a realidade, uma bem evidente é o método para investigar os fenômenos sociais. O jornalismo hegemônico abstrai do concreto uma versão minúscula, cercada por assertivas de natureza parcial, frequentemente associadas a uma visão de mundo fragmentária, predominando o individualismo. A ciência social, a priori, procura o inverso, ambiciona estabelecer conexões no intuito de possibilitar referências complexas concernentes à vida social, pois senão correria um risco imperdoável. Solucionar problemas complicados com perspectivas simplistas: eis a receita da mídia, eis o risco imperdoável para a ciência social.

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Sociólogo, professor da rede pública estadual do RS e jornalista