Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Censura ético-disciplinar

As recentes tentativas do governo em impedir, e até mesmo intimidar, jornalistas e membros do Ministério Público por notícias que não eram de seu agrado, como o caso Meirelles, chegaram a reavivar discursos inflamados e até mesmo a sugestão de uma tentativa de ressuscitação da ‘lei da mordaça’, porém ampliada. Um governo petista instituindo alguma forma de censura lato sensu nessa altura do campeonato seria outra bomba à la Riocentro a explodir no colo de algum governante num Puma reformado. Contudo, a imaginação fervilha, e eis que o Executivo encaminha ao Congresso uma lei para formação de um Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), curiosamente com apoio da própria Federação Nacional dos Jornalistas.

Pois então: já comentei aspectos de inconstitucionalidade na punição disciplinar aos médicos, e acho pertinente fazer alguns comentários, em nome da imperiosa necessidade democrática da liberdade de informação e expressão.

Calculo eu que os atuais ocupantes do Planalto devem também ter se ressentido de adotar qualquer forma de censura tradicional e talvez pretendam deixar a ‘mordaça’ para procuradores, promotores ou mesmo juízes. Mas o que fazer com os jornalistas? Alguém deve ter lembrado das profissões regulamentadas, de seus conselhos e ordens, que seguem em princípio as regras do direito administrativo, e lá vai uma idéia inovadora no campo da restrição das notícias.

Para todo o sempre

Um CFJ acredito que deva ter seus Regionais em cada estado, para fiscalizar, normatizar e punir os profissionais de imprensa. Na área médica, minha seara, admito ser necessário um rigor maior, e por vários anos encaminhei sindicâncias, coordenei fiscalizações, instruí e julguei processos, apenando de acordo com minha convicção, com os fatos presentes apenas nos autos e com respeito às normas maiores constitucionais. Imaginemos, então, que um jornalista escreva uma matéria que desagrade a um governante ou ao poder como um todo: ele entra com uma denúncia, que se transforma em processo disciplinar e vai a julgamento. Em tempo: sempre é bom lembrar que conselhos e ordens são formados por profissionais eleitos por determinado período de anos, e muitas vezes há acirradas disputas políticas e não raramente apoio financeiro e estratégico de fontes oficiais que não aparecem, claro.

Eis que, ao fim do processo imaginário acima citado, o jornalista seja condenado (também deverá existir um Código de Ética, discriminação das punições e outro Código de Processo Ético-Disciplinar, acho eu). E a pena imposta seja a cassação do exercício de sua profissão. Ele recorre à instância superior, o CFJ, que mantém a pena. Aí é que a coisa realmente pega. Nem o Poder Judiciário, a não ser que ocorram erros técnicos que caracterizem violação do devido direito legal ou assemelhados, levando à nulidade processual – pode reverter a questão.

Como no caso dos médicos, a pena transitada em julgado é definitiva: para todo o sempre o jornalista não poderá voltar à profissão. Aí está meu argumento de inconstitucionalidade: se até os criminosos mais bárbaros e hediondos passam no máximo 30 anos reclusos, uma infração ético-disciplinar, que em medicina pode abranger aspectos tangíveis e técnicos sujeitos a perícia, no jornalismo seria altamente subjetiva, no caso de profissionais da imprensa pode impedi-los definitivamente de exercer a profissão. E denúncias de cunho meramente pessoal ou político certamente não irão faltar, seja qual for o governo…

Criatividade ímpar

Aqui está uma inovação: a censura prévia chegou a ser abolida em vários países europeus ainda no século 19, mas volta e meia retorna, seja em regimes militares como o que tivemos, seja como hábito em monarquias ou ditaduras duradouras, como na África ou em alguns países do Oriente Médio. A Rússia czarista conseguia ir até mais longe: tinha a censura punitiva, após a publicação de algo que desgostasse ao governo imperial autocrata ou a alguém da nobreza ou da burocracia. E Lênin, e depois Stalin, também se encarregaram de manter tais métodos.

Aqui se inova: com um CFJ, um órgão independente do governo, uma denúncia contra um jornalista seria analisada por seus pares, eleitos, e a punição aplicada de acordo com as leis vigentes no país, como ocorre com as demais profissões. Para todos os efeitos, governantes poderiam até denunciar, mas não fariam censura, tampouco interfeririam nos resultados de um processo. E isso tem outro nome além de censura punitiva?

O que, caso o CFJ seja formado, deve ocorrer? O medo entre os jornalistas, que passarão a usar da autocensura, tornando-se cada vez mais dóceis frente aos detentores do poder, sem que se possa alegar que haja censura, violência física, ameaças ou coisa parecida.

É, para vários fins e tristeza de quem sonhava com novos tempos, nosso governo atual está demonstrando uma criatividade ímpar, embora para nosso desgosto. Talvez sirva como mais um item de exportação para usar nos cálculos da balança comercial.

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Médico, ex-conselheiro e ex-diretor do Departamento Jurídico do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo