O ‘mico’ é um dos jogos infantis mais conhecidos. Recortado o baralho e distribuídas as cartas, vence quem completar seus pares e não ficar com o simpático macaquinho, o único solteiro do jogo. É uma brincadeira simples e agradável que, respeitadas as especificidades, pode ser aplicada à análise da cobertura jornalística em determinadas circunstâncias. Em alguns casos, como nas recentes negociações entre Chávez e a guerrilha colombiana, é legítimo indagar: quem ficou com o mico?
O irrefreável desejo de ridicularizar a operação internacional montada pelo presidente venezuelano para obter a libertação de reféns em poder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) marcou o viés político presente em editoriais e notícias de quase todos os grandes jornais brasileiros. Podemos falar em torcida pelo fracasso sem incorrer em exagero. Basta passar os olhos sobre o que escreveram conhecidos articulistas e donos de colunas.
Quando, no último dia de 2007, Hugo Chávez leu, na rede de televisão estatal venezuelana, um comunicado da guerrilha alegando que a intensa atividade do exército colombiano na região impediu que a operação se efetivasse, as oficinas de consenso festejaram mais uma ‘profecia que se auto-realizava’.
Terremoto jornalístico
Em ritmo frenético, muito se discorreu sobre ‘a farsa montada às vésperas do Natal para enganar a opinião pública mundial’. Os ‘narcoterroristas’, enfim, admitiam ter mentido sobre o refém Emmanuel, filho de Clara Rojas, uma das 750 pessoas mantidas em cativeiro na Amazônia Colombiana. Com esse reconhecimento duas coisas ficavam patentes: a justeza da intransigência de Uribe e o ‘fato de Chávez não ter envergadura política, moral e psicológica para tomar para si o papel de negociador’. Melhor, impossível, senhores editores. O mico estava com o líder bolivariano.
Estamos diante de algo que vai além de preferências pessoais. A produção jornalística só pode ser compreendida como lugar e objeto de articulações hegemônicas, espaço de representações simbólicas. A motivação da imprensa deitava raízes na desconstrução de lideranças latino-americanas e os significados de seus êxitos e fracassos. Havia dois reféns: Chávez e Uribe. O sucesso de um deles significaria o cativeiro político do outro. E cremos ser ocioso dizer por quem dobram os sinos da velha mídia.
A libertação de Consuelo Gonzáles de Perdomo e Clara Rojas provocou um terremoto no campo jornalístico. Não foi apenas a imagem de Álvaro Uribe que saiu enfraquecida no cenário internacional, mas toda uma estrutura narrativa. O êxito da segunda tentativa de libertação remete a questões que ultrapassam o fato em si.
Porta-voz das oligarquias
Como destaca o professor Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais, ‘estamos falando de imagem com relação à América Latina, talvez. Em linhas gerais, eu diria que Uribe dá sinais de fraqueza. E, portanto, pode ser que isso apresse uma coisa positiva, que é uma aproximação do Uribe – e, portanto, da Colômbia – com uma aliança sul-americana, o que seria altamente desejável. Esse é um aspecto regional que tem peso. Por outro lado, você pode ver que os Estados Unidos estão muito quietos nessa história, não sabem bem como se posicionar porque se ficar o bicho come, se correr o bicho pega’. Com quem está o mico?
Sentencioso, o editorial da Folha de S. Paulo (12/01) insiste na tecla batida de forma orquestrada: ‘A libertação de Clara Rojas e Consuelo González tornara-se imperiosa para as Farc depois que se descobriu a farsa do menino Emmanuel – o filho de Rojas que a guerrilha colombiana prometera libertar, mas que não estava no cativeiro. Era a única maneira de amenizar um pouco a desmoralização dos seqüestradores flagrados na mentira, que respingou no patrocinador político da operação, o presidente Hugo Chávez.’ Melancólico, se espera mais de um editor. Que, ao menos, sofisme com mais requinte.
O desmentido cabal está na matéria de capa do diário argentino Página 12. Nela, Consuelo Gonzáles relata com precisão:
‘No dia 21 de dezembro, começamos a caminhar até o lugar onde iriam nos libertar; caminhamos quase 20 dias. Neste período, tivemos que correr várias vezes porque os militares estavam muito próximos’, relatou. González inclusive denunciou que no dia em que Alvaro Uribe deu por suspensa a entrega, as Forças Armadas colombianas lançaram o pior ataque à zona em que se encontravam. ‘No dia 31 soubemos que iria ocorrer uma mobilização muito grande e, no momento em que estávamos para sair, houve um bombardeio muito forte e nós tivemos que nos deslocar rapidamente para outra área.’
Em outras palavras, a ex-refém confirma o que disseram Chávez e o comunicado das Farc. É fácil saber quem ficou com o mico. Com uma imprensa que, para cumprir o papel de porta-voz das oligarquias, ignora os próprios pressupostos que lhe conferem sentido.
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Professor titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ