Janeiro de 1995. No auge dos meus doze anos, tive a oportunidade de embarcar em minha primeira viagem internacional. Quis a vida que meu destino fosse a Venezuela. Desde 1989, meu pai representa empresas da área de refratários nesse país e minha família sempre recebeu em casa seus clientes venezuelanos. Aquelas duas semanas de visita foram, então, uma reafirmação do meu contato com uma cultura, de certo modo, íntima.
Quando crianças, ou pré-adolescentes, mantemos expectativas que nem sempre condizem com a realidade. No avião, eu imaginava uma Venezuela desenvolvida e organizada. A situação brasileira e os relatos paternos formavam meu marco referencial. Minha decepção foi constatar que Caracas se parecia muito com Belo Horizonte. Trânsito caótico, poluição, meninos pedindo esmola no sinal, prédios antigos e favelas. Sim, lá existem muitas favelas. Para piorar, logo que saímos do aeroporto, meu pai me advertiu: ‘Fica esperto, que aqui eles roubam mesmo!’
De lá seguimos todos para Ilha de Margarita, para a belíssima cidade de Porlamar. O contraste se evidenciou. Com uma estrutura criada especialmente para o turismo, o Caribe venezuelano transbordava luxo e dinheiro. Os petrodólares faziam todo sentido e eu estava convencido, naquele momento, que estava fora do Brasil. A importância dessa estadia foi conviver com os contextos de um país que, por sempre explicitar esses abismos sociais, econômicos e políticos, construiu uma história repleta de dualidades.
Pró ou contra
Abril 2007 – ‘É meu filho, aquele país se divide a cada dia. O Chávez não está com tanto apoio como ele propagandeia. A oposição está se fortalecendo. Agora ele vai ou racha’, disse meu pai ao chegar de mais uma viagem a Puerto Ordaz e a Caracas. ‘E os não-chavistas estão sofrendo uma perseguição incrível. Muitos são presos sem direito a julgamento. Tudo na surdina. Não é brincadeira. Infelizmente, grande parte dos intelectuais venezuelanos está migrando para os Estados Unidos. Uma pena para eles. Isso não vai acabar bem, já estão esperando por uma ditadura. Nos meus quase vinte anos de convívio com os venezuelanos, nunca tinha vivenciado um ambiente pesado como o desses últimos anos’, concluiu ele.
Como no avião, mais de dez anos antes, comecei a imaginar o que se estaria passando por lá. Uma década intensa havia se passado. Foi então que tive a idéia de pedir ao meu pai que da próxima vez que ele estivesse por lá comprasse jornais impressos venezuelanos para eu pudesse lê-los e analisá-los.
Junho de 2007 – Como de costume, meu pai desembarca no Brasil em vôo proveniente de Caracas, via Bogotá. Desta vez ele trazia em sua mão um grande pacote. ‘Sua encomenda!’, disse, ao me ver. Quando abri, deparei com dezenas de jornais impressos da Venezuela, de diversos formatos e de diferentes cidades. Coincidentemente, meu pai presenciou as manifestações dos universitários ocorridas na semana passada, contra o fechamento da RCTV. Comecei então a folheá-los. Os exemplares são dos dias 31 de maio (quinta-feira) e 1º e 2 de junho (sábado e domingo). Logo notei que claramente eles tendiam a uma posição pró ou contra o governo. As manchetes de primeira página não deixavam margem para dúvidas.
Posições bem definidas
Um dos que logo me chamou a atenção foi o diário Vea, de Caracas. Suas duas capas, isso mesmo, destacam uma suposta estratégia golpista contra Hugo Chávez. A matéria principal intitulada ‘Niños ricos quierem tumbar al gobierno’ (‘Crianças ricas querem derrubar o governo’) denuncia o uso de crianças e adolescentes pelos partidos de oposição para atentar contra a paz e a Constituição. O texto é baseado em uma carta escrita por Josefina García e Milagros Ramírez, diretoras do Comitê Preparatório da Associação de Jovens Trabalhadores, que faz as acusações de manipulação.
A contracapa destaca que as ações golpistas já estão esfriando e que, segundo o chamado Defensor del Pueblo (Defensor do Povo) Germán Mundaraín, nenhum adolescente foi preso pela polícia venezuelana, só enquadrados legalmente. Ele garante que muitos dos manifestantes não são estudantes. O jornal, em formato tablóide, também publicou uma carta de Fidel Castro, uma seção histórica exaltando um movimento revolucionário de 1962, na base naval de Puerto Cabello, e várias obras de infra-estrutura que o governo vem desenvolvendo.
Vamos a outro jornal. O escolhido desta vez é o Notitarde, da cidade de Valência, edição de 2/6/2007. ‘Secuestrada la marcha estudiantil’ (‘Marcha estudantil seqüestrada’) e ‘Chávez cayó diez puntos’ (‘Chávez cai dez pontos’) são as manchetes de primeira página. Os destaques são a ação da Polícia Metropolitana de Caracas, que reprimiu os estudantes da Universidade Católica Andrés Bello (UCAB) que pretendiam chegar a Assembléia Nacional para entregar uma carta e a pesquisa da empresa Hinterlaces sobre a popularidade do presidente venezuelano.
Os números da pesquisa mostram que a popularidade de Cháverz caiu de 49% para 39% e que 80% das quase mil pessoas entrevistadas em quinze cidades não concordam com o fechamento da RCTV. Segundo Oscar Schemel, diretor da Hinterlaces, a Venezuela passa por uma grande ruptura entre os setores populares ligados a Chávez e pela primeira vez existe um consenso contra o presidente.
A polêmica envolvendo o presidente Lula também repercute na matéria ‘Lula da ‘espaladarazo’ a Congreso de Brasil’ (‘Lula dá respaldo a Congresso do Brasil’). O presidente brasileiro é lembrado em todos os impressos.
O Nueva Prensa, da cidade de Guayana, edição de 31/5, relata que chavistas vão defender a revolução. Diante do cenário de protestos, o grupo do Estado de Bolívar acredita que a RCTV não representava os verdadeiros sentimentos do povo venezuelano e que se colocava a serviço de uma oligarquia. Já os jornais El Nacional, de Caracas, e Correo del Caroní, também de Guayana, ambos da mesma data, trazem praticamente a mesma manchete: ‘Somos estudiantes, no somos golpistas’ (‘Somos estudantes, não somos golpistas’), no primeiro, e ‘Somos estudiantes, no políticos’ (‘Somos estudantes, não políticos’), no segundo.
A luta pela liberdade de expressão impetrada pelos estudantes é relatada de maneira concisa, principalmente no que diz respeito às supostas detenções de adolescentes feitas pelo governo. Vale lembrar que esses são jornais de grande circulação no país.
Globovisión pode ser próximo alvo
Ainda não tive tempo de ler todo o conteúdo dos veículos para analisar criticamente o texto das matérias, mas está clara a divisão da imprensa venezuelana no tratamento dos acontecimentos da última semana. E, tirando um ou outro jornal, o jogo de oposição ou de favorecimento é aberto. Os próprios enfoques, títulos, chamadas e textos seguem um tratamento que apresenta o conteúdo ao leitor sob um ponto de vista imerso no interesse editorial.
Outro aspecto que chama a atenção são as propagandas chavistas que ocupam páginas de todos os jornais, prós ou contra. Imaginem o valor ou os benefícios dessas publicidades. Nelas aparecem imagens do presidente diante de milhares de pessoas, clamando por uma marcha antiimperialista, bem ao estilo populista. Em uma foto estampada na editoria de Internacional do Correo del Caroní (1/6), em meio a pessoas empunhando bandeiras, surgem os seguintes dizeres: ‘Ahora la liberdad de expresión es de todos. Vamos todas y todos a marchar en familia con entusiasmo y alegria, para que Bush saque sus garras de Venezuela! Venezuela se respeta!’ (‘Agora a liberdade de expressão é de todos. Vamos todos e todas marchar em família com entusiasmo e alegria, para que Bush tire suas garras da Venezuela. Venezuela se respeita!’).
Minha surpresa recaiu justamente sobre a massiva divulgação de conteúdos contra o governo. Críticas ao governo são feitas de maneira contundente Acreditava que Chávez impunha uma certa censura aos impressos, o que, de acordo com os exemplares que comigo estão, não acontece. Não podemos esquecer também que o público leitor desses veículos não deva se centrar nas classes C e D, para as quais as políticas populistas de Chávez se direcionam e que sustentam seu mandato. O seu medo, por enquanto, está no alcance da mensagem televisiva. O fechamento da RCTV é uma prova. Por isso, transparece um certo receio da relação do presidente com o canal de televisão Globovsión, agora o principal de oposição ao governo. Chávez já até o classificou como um inimigo da pátria.
A organização Repórteres sem Fronteiras já se pronunciou temerosa com a situação. Meu pai também. ‘A Venezuela se transformou em um barril de pólvora. Isso não vai acabar bem.’ Em julho ele tem outra viagem marcada para Caracas.
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Estudante de Jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG