Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Clamor e sombra

Como pano de fundo do clamor pela regulação da mídia ergue-se uma cortina de sombra que ameaça a liberdade de expressão com diferentes modalidades de censura.

Nenhuma censura prévia de conteúdos jornalísticos, opinativos, religiosos, ideológicos, políticos é cabível no Brasil. Para raciocinar por absurdo: não há nada nas leis do país que impeça a existência de um único jornal, vendido em todos os municípios de todos os estados da Federação. Ou de nenhum jornal. Assim como nada proíbe que haja duzentos jornais por município, ou algo como 1,1 milhão de títulos periódicos impressos (ou digitais). Só depende da iniciativa de interessados. Ou da falta de iniciativa. Ou da falta de interesse.

Antes que o desconfiado leitor pergunte “quem foi que disse” que isso é juridicamente possível, dou ciência de consulta que fiz ao advogado Eduardo Mendonça, de Brasília. Depois de hesitar uma fração de segundo ao telefone, ele avalizou o raciocínio, não sem mencionar a possibilidade de questionamento de uma tal situação à luz das leis de concorrência econômica.

A hipótese de haver no país um só jornal, alucinada mas juridicamente irrepreensível, é apresentada aqui para desanimar os que, com mão de gato, pretendem chegar à censura de conteúdos por meio da regulação da mídia. São, além de autoritários de diferentes matizes, os que constataram ter a fraqueza dos partidos de oposição ao governo federal, desde 2003, criado uma espécie de vácuo logo ocupado por uma parte da mídia jornalística.

Delfim tamancudo

Trata-se de pessoas ou grupos que não se conformam com as opiniões, denúncias, ataques, baixarias, armações cometidas contra seus partidos ou políticos preferidos. Ignoram ou fingem ignorar que sob a lei brasileira cada um diz o que quer, do jeito que quer, quando quer. Se cruzar a linha da ilegalidade, pode ser processado. O que não se pode admitir em regime democrático, na vigência da Constituição de 1988, é que alguém seja impedido de dizer algo, ou seja forçado a fazê-lo acatando alguma norma de “bom comportamento”.

Tomemos um exemplo de poderoso do passado que voltou a ser poderoso nos governos de Lula e Dilma: Delfim Netto. O Estado de S. Paulo de 19/11 publica uma declaração do ex-ministro de Costa e Silva, Médici e Figueiredo com o seguinte teor: “O sacrifício do setor sucroalcooleiro (com o controle de preços de gasolina) é uma estupidez monumental”

Contra quem se dirige a invectiva delfiniana? Não foi a reeleita chefe do governo que decidiu segurar preços administrados, como os dos combustíveis? Delfim quer nos fazer crer que Dilma é “monumentalmente estúpida”? (Independentemente de ter ou não razão em sua crítica.) Isso lá é jeito de falar?

Se a presidente da República se sentisse ofendida, poderia levar o caso aos tribunais. Para isso, porém, teria que vestir a carapuça. Logo, não há muito a fazer. Talvez pedir a um aliado político que meta o sarrafo no principal economista do regime militar. Mas Dilma também não o faria, para não perturbar o diálogo com Delfim.

Liberdade, sim

Existem duas questões políticas essenciais quando se entra no terreno da regulação da mídia. A primeira é a da liberdade de expressão. A segunda é a do chamado espectro da radiodifusão.

Infelizmente, é impossível ignorar que pessoas e grupos entram nesse debate da regulação de olho numa (impossível) censura. Eduardo Mendonça publicou no site Jota, recentemente, artigo dedicado ao tema: “Constituição e sociedade“. Critica agressões e arranhões à liberdade de expressão.

A transcrição a seguir abrange, com finalidades didáticas, as notas remissivas contidas no trecho.

“A centralidade da liberdade de expressão, no Brasil pós-1988, tornou-se um dogma teórico. Na prática, porém, as restrições são cada vez mais frequentes, não observam critérios uniformes e, o que é mais preocupante, têm deixado de causar maior espanto. Já faz algum tempo que venho ensaiando a ideia de escrever sobre isso. Melhor começar, antes que alguém queira proibir.

“Visto como uma das principais conquistas da redemocratização, o direito de expressar pensamentos, ideias e informações foi protegido enfaticamente pela Constituição de 1988. Para além da positivação como direito fundamental (1), o constituinte achou por bem dedicar todo um capítulo à comunicação social e explicitar a plena liberdade de informação jornalística (2), bem como a vedação a qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística (3). Tal ênfase se reflete na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, acompanhando os principais tribunais constitucionais do mundo, atribui uma posição preferencial à liberdade de expressão e destaca o seu papel constitutivo no regime democrático (4).

(1) CF/88, art. 5o; ‘IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (…) XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional’.

(2) CF/88, art. 220: ‘A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1o – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5o, IV, V, X< XIII e XIV’.

(3) CF/88, art. 220, § 2o: ‘É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística’.

(4) A título de exemplo, v. ADI 4451 MC, DJ 01.07.2011, Rel. Min. Ayres Brito.”

TSE quis tutelar

Mendonça registra adiante sua inconformidade com maneiras judiciárias de praticar censura, inclusive uma bem recente, de autoria do Tribunal Superior Eleitoral, que pretende balizar a propaganda eleitoral segundo uma régua “construtiva”. Talvez como reação estapafúrdia à “desconstrução” de candidatos à Presidência da República praticada por campanhas antagonistas.

O advogado recomenda cuidado redobrado “com os paternalismos de qualquer espécie e com as tentativas de impor qualidades como bom senso ou moderação, sobretudo quando sejam invocados como fundamento para cercear a palavra alheia”. Constata que a prova de fogo da liberdade de expressão é justamente garanti-la quando a manifestação pareça desatinada ou excessiva.

Há outros direitos a defender. Acrescentemos mais um trecho do artigo de Mendonça:

“Isso não significa que a liberdade de expressão seja insuscetível de qualquer restrição, mesmo em casos extremos. A ordem jurídica protege também outros direitos, como a honra, a privacidade e a imagem, que podem justificar a imposição de limites aos discursos abusivos.”

Regras claras

Não é fácil conciliar esses elementos. Mendonça propõe duas diretivas básicas: a punição a posteriori, com “concessão de direito de resposta e/ou imposição de indenizações pecuniárias a serem pagas pelos autores do material ilícito”. E a…

“…necessidade de que haja critérios uniformes e estáveis para a definição dos limites à liberdade de que se trata. A livre circulação de ideias manifesta-se em diferentes contextos e é importante que haja um mínimo de coerência no tratamento do tema, inclusive para garantir que os padrões adotados não sejam erráticos ou voluntaristas – equivalentes à moral de cada juiz ou tribunal –, e sim que correspondam ao estágio atual da percepção e reflexão coletivas. A sociedade precisa pelo menos entender o padrão de atuação dos seus controladores, a fim de dosar o poder que deseja depositar em suas mãos.”

Reeleição de FHC

Passemos ao tópico da regulação propriamente dita da mídia, ou seja, do infotainement em rádio e televisão, que usa um espectro limitado de canais, cuja concessão é responsabilidade do governo federal, e onde reina a mais completa balbúrdia (inteiramente conveniente aos poderosos locais, estaduais e nacionais).

O Observatório da Imprensa acompanha o assunto desde janeiro de 1997 (edição número 13), quando Alberto Dines escreveu, sob o título “Dois escândalos simultâneos”:

“A Folha de S. Paulo fechou o ano com chave de ouro: uma série de reportagens, efetivamente investigadas, comprovando a venda de concessões para novas emissoras por uma quadrilha instalada na Câmara de Deputados. Trabalho da repórter especial Elvira Lobato, perita na área das telecomunicações, assistida pelo próprio secretário de Redação, Josias de Souza, as denúncias escancaram dois escândalos simultâneos:

“1) A máfia do rádio fazendo tráfico de influência no Congresso de forma idêntica à das sucessivas quadrilhas que assaltaram o Orçamento da União em proveito das empreiteiras.

“2) O caráter espúrio que envolve o patronato radiofônico nacional, que se multiplica em cada legislatura e coloca na privilegiada posição de formadores da opinião pública − numa sociedade ainda não acostumada à leitura − um bando crescente de políticos e empresários do mais baixo nível, gozando das prerrogativas e imunidades constitucionais sem a menor qualificação para isso.

“Este lamaçal não é novo, já ficara patente durante o mandato de José Sarney quando este, para conseguir um ano adicional na Presidência, fez uma farta distribuição de concessões radiofônicas e televisivas junto aos apaniguados (inclusive jornalistas que até hoje pontificam nas colunas de opinião).

“Levantamento publicado no Estadão (setembro de 1996) revela que 104 dos 513 deputados federais e 25 dos 81 senadores são donos ou sócios de emissoras de rádio ou TV. Cerca de 40% das emissoras de rádio e 27% das de TV têm políticos como sócios. Como no século XVIII, os corsários vivem na sombra do poder e nele se cevam.”

Coronelismo eletrônico

Em agosto do mesmo ano, este Observatório reproduziu reportagens publicadas no Correio Braziliense por Sylvio Costa e Jayme Brenner sob o título “Dossiê das concessões de TV”. Na abertura da série, Costa escreveu:

“Apesar de todo o cuidado que tomamos, é possível que tenhamos incorrido em falhas aqui e ali. Rastrear perto de 2 mil RTVs [estações Retransmissoras de Televisão], afinal, é como caçar agulha em palheiro. Em um caso ou outro, pode-se ter tomado como agulha um simples e inocente alfinete. Tal crítica não cabe, no entanto, para o grosso do material publicado. E dali emerge, inconfundível, uma faceta até então desconhecida do governo Fernando Henrique: a sua cumplicidade com o brasileiríssimo fenômeno do ‘coronelismo eletrônico’.

“O leitor atento irá perceber que a maioria das RTVs entregues a políticos foi distribuída por portarias assinadas em datas próximas a janeiro de 1997, data da votação da reeleição. Mera coincidência? Talvez. Mas a relutância do Ministério das Comunicações em abrir as informações a respeito do tema divulgando, por exemplo, a relação das empresas e entidades que tiveram os seus pedidos para instalação de RTVs negados só estimula as suspeitas de que se tenta esconder algo.”

Quatro ministros das Comunicações de Fernando Henrique não tocaram no assunto. Sérgio Motta, que morreu em 1998, e seus sucessores Luís Carlos Mendonça de Barros, Pimenta da Veiga e Juarez Quadros.

A lista veio e se foi

O primeiro a ocupar a pasta das Comunicações no governo Lula foi Miro Teixeira, que promoveu a divulgação, no site do Ministério, do cadastro com os nomes dos sócios de emissoras de rádio e televisão no país. Miro foi substituído por Eunício Oliveira e este por Hélio Costa, que, como se sabe, teve importante carreira jornalística na TV Globo antes de se tornar político eleito em seu estado, Minas Gerais.

Costa assumiu em 2005. No início de 2007, o cadastro foi removido do site. O episódio foi contado pelo professor Venício A. de Lima, colunista do Observatório da Imprensa, em “Recadastramento e direito à informação”.

Enquanto esteve na internet, a listagem pôde ser consultada pelos interessados, entre eles o próprio Lima, que realizou, com a colaboração de Marcela Duarte D’Alessandro e Fábio Lúcio Koleski, a pesquisa “Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: ilegalidade e impedimento”.

Procuradoria Geral

Em outubro de 2005, o Projor, entidade mantenedora do Observatório, auxiliado pela advogada Taís Gasparian, entregou ao então vice-procurador geral da República, Roberto Gurgel (depois procurador geral), junto com o relatório da pesquisa, uma “representação destinada a contestar a promiscuidade entre concessões públicas de rádio e televisão e mandatos parlamentares”, como se escreveu na época.

Em 2006, o Observatório se fez representar em painel da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados sobre a relação entre cidadania, mídia e política. Foi pedida a ajuda da Comissão para combater o coronelismo eletrônico.

Em 2007, o redator chefe do Observatório, Luiz Egypto, informou, sob o título “Parlamentares na radiodifusão − Ministério Público propõe anulação de concessões”:

“O Ministério Público Federal no Distrito Federal, com base na documentação do Projor, propôs ações civis públicas para anular a concessão de seis empresas de rádio e TV vinculadas a deputados e ex-deputados federais. Os procuradores da República José Alfredo de Paula, Raquel Branquinho e Rômulo Moreira, signatários das ações, sustentam que ‘tais deputados, sem qualquer pudor, participaram das sessões em que houve análise e aprovação de requerimentos das empresas a estes vinculadas, inclusive votando pela outorga ou renovação das concessões’.”

As ações não prosperaram.

Pode piorar

Desde então, informações, questionamentos, digressões, análises e opiniões sobre a regulação da mídia povoam as páginas do Observatório.

O assunto, como a corrupção na Petrobras, é antigo. Só a falecida velhinha de Taubaté desconhecia. Mas não se avança. Entre outras razões, porque as boas razões estão contaminadas por más intenções, fazendo despertar a suspeita de que as emendas propostas podem ficar pior do que o soneto.

Quem não quer regulação tira proveito disso.

Restaure-se a moralidade

Mas há propostas novas. Em artigo no Estadão (“Regulação da mídia”, 19/11), o professor Sérgio Lazzarini, do Insper, depois de relatar idas e vindas da presidente Dilma a respeito do tema, escreve:

“A blogosfera governista deixa muito claro que a proposta de regulação tem endereço certo: grandes grupos de jornalismo que, segundo eles, distorcem informações a favor da oposição e das elites. Ainda assim, vamos dar o benefício da dúvida. Poderiam estar o governo e suas bases de fato interessados na criação de um marco de regulação imparcial e eficaz?”

E faz a chamada proposta concreta:

“Vamos, antes de tudo, reforçar nosso marco regulatório de forma ampla. O governo terá de se comprometer a manter as agências verdadeiramente independentes, sem virar a mesa quando algo for decidido à sua revelia. Terá de acabar com as nomeações políticas e loteamento de cargos, indicando técnicos de grande experiência e reconhecimento no seu setor. As agências terão mandato claro e metas propostas por especialistas, discutidas pela opinião pública e aprovadas pelo Legislativo. No quesito concorrencial, vamos definir com clareza o que compete a cada agência e o que já pode ser feito pelo órgão de defesa da concorrência que já existe, o Cade. Aí, sim, podemos discutir o interesse público de um novo marco de regulação da mídia e até mesmo, se cabível, em outros setores. Que tal?”

Que tal?