Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Cobertura festiva, superficial

Hora de perguntar: qual o papel da imprensa numa Copa? Registrar e analisar os eventos (nos gramados e em torno deles), ou animar as audiências? O ‘Cala a boca, Galvão’ precisa ser reexaminado, nada teve de pessoal, o torcedor brasileiro mandava dizer simplesmente que está cansado de badalação. Quer futebol ou futibol – não importa o sotaque – sem as lantejoulas e penduricalhos que tanto deformam a cobertura.


Além de informadores, jornalistas são peças-chave na sustentação de um megashow patriótico, galáctico, fabulosamente lucrativo. Esta dupla condição coloca a imprensa desportiva diante de obrigações contraditórias e singulares.


O crítico de teatro, teoricamente, não se preocupa com o futuro da produção que vai comentar: se a temporada for encerrada em função da arrasadora resenha que escreverá, não é seu problema. O jornalista de política, economia ou negócios está comprometido apenas com a veracidade do que vai revelar, quaisquer que sejam as conseqüências do relato. O jornalista desportivo pode ser crítico, veemente, rigoroso… ma non troppo, até certo ponto: mesmo desiludido obriga-se a manter algumas ilusões básicas. Para consumo íntimo e uso externo. A não ser que pretenda transferir-se para outra editoria.


Técnica precária


Questão para não ser respondida, incômoda, puramente provocadora, quadrienal, suscitada em seguida à entrega do caneco de ouro ao vencedor ou quando a seleção nacional é despachada prematuramente para casa. Como agora. Mas é imperiosa, funciona como um marco normativo e existencial. Em algum momento do calendário futebolístico mundial o repórter, locutor, comentarista ou editor deve parar e se cutucar com uma interrogação: ‘Que diabo estou fazendo aqui?!’ Resposta curta: ‘Você está aqui compactuando’. De alguma forma você faz parte da encenação, você também é responsável pelas situações que denuncia.


Dunga foi um desastre, ninguém duvida. Mas quem o indicou efetivamente e por quê? Suas convocações conduziam a um beco sem saída, mas ninguém se animou em antecipá-las e revertê-las. Foi extinta a investigação no jornalismo futebolístico? Raramente existiu.


O experimentado e corajoso Marcos de Castro cobrou no Globo a falta de repórteres nesta Copa (ver ‘A Copa sem repórter‘). Há muito tempo que não há repórteres nos eventos esportivos porque os investimentos são feitos para garantir a presença de celebridades fingindo sapiência futebolística. Ficou chique dizer bacana; dito isto, satisfazem-se as demais exigências.


Se a Comissão Técnica estava encarcerada num bunker não seria possível chegar a outras fontes? Quando Juca Kfouri revelou na Folha de S.Paulo os sérios problemas musculares de Kaká alguém repercutiu, berrou, cobrou explicações? No domingo (4/7), à chegada da delegação, o respeitado ortopedista carioca José Luiz Runco confirmou que Kaká jogava com apenas 85% do seu potencial físico. Isso não é um número, é uma aterradora constatação da precariedade técnica do técnico da seleção


Vexames maiores


Uma legião de jornalistas foi à África do Sul para cobrir um acontecimento de importância mundial, mas o produto oferecido ao consumidor de informações foi provinciano e descartável, resumiu-se ao festivo e superficial. Criticar a seleção no transcurso da Copa é crime de lesa-pátria e lesa-cerveja. O jornalismo futebolístico encaminha-se a passos largos para a consagração do oba-oba. Os mais experientes sabem que não podem insistir. Excesso de veemência tira o torcedor dos estádios.


A moçada da imprensa suou a camisa (apesar do frio), dormiu pouquíssimo para atender às diferenças do fuso horário, mas não respondeu às perguntas básicas. A pauta impunha amenidades e oferecia numerologia. Quando não se têm fatos e evidências, o jeito é recorrer às estatísticas. O histórico dos confrontos Brasil-Holanda indicava uma barbada, comentaristas veteranos a vaticinaram. Ferram-se.


Ferramo-nos. Quando começou o catastrófico segundo tempo, antes do gol de empate e a tragédia já se insinuava, ninguém ousou levar a sua perplexidade ao microfone ou batucar no twitter a pergunta crucial: o que aconteceu no vestiário? A Holanda voltou outra, o Brasil ficou o mesmo – de salto alto. Esborrachou-se.


Naquela mesma manhã do fatídico 2 de julho de 2010, na Página Dois do Estadão, o chargista Cassio Loredano pressentia e antecipava o desenlace com uma obra-prima irônica, dolorosa, definitiva: o onze holandês na clássica pose para a posteridade: seis em pé, cinco acocorados: Vermeer, Rembrandt, Brueghel e Van Eyck; Spinoza e Erasmo; Rubens, Van Gogh, Nassau, Cruyff (com a bola na mão) e Mondrian. Na legenda, a sentença: ‘Eles vêm com tudo’. Vieram e levaram.



Com três dias de atraso, na segunda-feira (5/7), um patético Ricardo Teixeira gaguejava ‘hecatombe’, ‘descontrole emocional’ e prometia a participação de um psicólogo na próxima Comissão Técnica. Esqueceu que já tivemos alguns. Freud ajuda, mas não corre no gramado. O problema foi cromático: os guerreiros jogaram com camisa azul mas amarelaram – como em 1998.


Teixeira também acusou a imprensa de botar caraminholas na cabeça dos jogadores para fazê-los de deuses. Não chega a ser pecado. Grave é constatar que nestes 80 anos de Copas do Mundo os maiores vexames foram cometidos pelos demônios de cartola. Mais grave ainda é resignar-se, achar normal.


***


Na véspera da tragédia, Loredano poderia ter armado um time capaz de reverter o resultado: José Bonifácio, Pedro II, Getúlio e Euclides; Machado e Drummond; Villa Lobos, Portinari, Telê Santana (com a bola), Guimarães Rosa e Tom Jobim. Os vivos estão no banco dos reservas.


 


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