Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Com a Marselhesa nos ouvidos,
aceitamos a retórica da imprensa francesa



‘Pelo menos duas emissoras de TV francesas limitaram a exibição de imagens de carros em chamas – uma das marcas da atual cobertura – para evitar o estímulo à violência.’


Esse foi o lide de uma matéria da Associated Press enviada de Paris no sábado (12/11) e assinada por Elaine Ganley. A matéria cita as emissoras, reproduz declarações de seus executivos e as reclamações telefônicas dos líderes dos amotinados: ‘Por que é que vocês não mandaram as câmeras?’ [clique aqui para ler o resumo da matéria].


Alguém duvida que se esta constatação de autocensura ocorresse na imprensa americana não ganharia destaque na imprensa brasileira?


A verdade é que a mídia brasileira está engasgada com os acontecimentos na França. E por várias razões. A primeira relaciona-se com a atrapalhação da própria mídia francesa, que ainda não soube desfazer-se da retórica cartesiana das suas elites e não conseguiu aproximar-se do pragmatismo que se exige dos jornalistas.


Embora o jornalismo brasileiro, a partir da segunda metade do século 20, seja mais próximo do estilo americano, nossa tradição intelectual está mais vincada nos padrões franceses. A Marselhesa soa nos nossos ouvidos com mais intensidade do que nosso hino nacional, exceto talvez nas finais das Copas do Mundo. O que não chega a ser ruim, ao contrário: um pouco mais de galicismos e mesmo de galiciparlice (ver Aurélio e Houaiss) são sempre melhores do que o trash norte-americano que aderiu ao nosso cotidiano.


A revolução modernista de 1922 foi em grande parte dirigida contra o dernier cri que se ouvia dos cafés e salões parisienses. Esta dependência literária não é salutar para análises políticas – caso desta insurreição que grassa na periferia das cidades francesas cuja cobertura resulta incompleta e, sob alguns aspectos, parcial.


Mais opinião que informação


O republicanismo francês foi, de certo modo, seqüestrado pelas esquerdas e isto se deu de tal forma que estamos esquecendo que o atual governo francês é efetivamente de direita, abertamente conservador.


Quando o governo Jacques Chirac decidiu proibir o chador muçulmano nas escolas públicas a pretexto dos ideais secularistas, cometia uma agressão contra o sagrado direito da identidade cultural. Engolimos essa sem espernear graças à camuflagem ‘republicana’. Se o caso tivesse acontecido nos EUA, teríamos sessões de protesto no Congresso, caras pintadas diante dos consulados americanos e bandeiras queimadas na Avenida Paulista.


É preciso reconhecer que a República francesa virou peça de museu. É menos igualitária, menos flexível e menos dinâmica do que as monarquias parlamentares no Reino Unido e Escandinávia. O federalismo alemão é mais moderno e mais democrático do que o centralismo imperial de viés bonapartista dos franceses. A matriz suíça com seus cantões nacionais é mais apropriada para os tempos modernos do que o chauvinismo gaulês.


Alguns excessos legais e a pactuada autocensura (que certamente não foi inspiração divina) estão passando em brancas nuvens. Nossa imprensa não soube detectá-los e não está interessada em discuti-los. Afinal, ainda estamos no Ano Brasil-França. E à imprensa francesa não interessa abrir os flancos do regime – o orgulho não deixa. Com isso nossa mídia fica sem as fontes críticas para abastecer-se e opinião pública brasileira sem as referências para estabelecer as necessárias simetrias.


Nenhum colunista ou opinionista brasileiro ousaria chamar um francês de gringo. Mas se a abjeta designação é empregada abertamente na grande imprensa para designar os estrangeiros, então ela não deveria ficar restrita apenas aos norte-americanos. A questão não se resume ao filogalicismo ou o antiamericanismo. Nossa imprensa perdeu os seus contatos com o mundo exterior, e mais especialmente com a Europa, desde o momento em que deixou de ter correspondentes permanentes. Enviados especiais não produzem material para análises, no máximo opiniões.


Os poucos correspondentes que sobrevivem são, em geral, free-lancers; ganham por artigo e, por melhores que sejam, não conseguem oferecer uma cobertura sistemática das respectivas áreas. São substituídos por vedetes internacionais cujos textos são distribuídos por agências e que não estão minimamente preocupados em oferecer ao leitor brasileiro uma cobertura didática e balanceada. Querem apenas vender as suas idéias.


Patriótica demais


Graças à intermitência da cobertura européia criaram-se lacunas em nosso noticiário que, agora, tornaram-se muito visíveis. Os 600 mil portugueses que a partir dos anos 1950 se estabeleceram em Paris ou arredores também faziam parte da legião dos gastarbeiter, os trabalhadores ‘convidados’ que criaram o milagre econômico do Mercado Comum. Integraram-se perfeitamente à sociedade francesa; os que preferiram regressar aplicaram o seu dinheirinho nas estagnadas economias de suas terras, prosperaram. Também os seus filhos e netos assimilaram-se à sociedade francesa tal como aconteceu com espanhóis, italianos e gregos.


Imperioso consignar que o mesmo se deu com os magrebinos (do Magreb, tunisinos, marroquinos e argelinos) da primeira e segunda geração, que também eram muçulmanos como os netos e bisnetos agora rebelados. A diferença é que o islamismo dos amotinados está intoxicado por fúrias políticas deflagradas por frustrações reais, mas estranhamente desprovidas de reivindicações, reclamações ou causas. E isso, parece, não chama a atenção dos analistas franceses.


A imprensa francesa, cheia de dedos, teme encarar esta e outras realidades anti-republicanas. Não lhe ficaria bem reconhecer que o movimento pode ter surgido espontaneamente, mas a sua continuação está sendo visivelmente orquestrada. Não quer enxergar os sinais de uma organização atrás da baderna – palavras de ordem emitidas pela internet e avisos à imprensa para cobrir os incêndios de carros em determinados locais.


A imprensa francesa é patriótica demais, esta é verdade. Problema dela e da sociedade à qual deve servir, aparentemente desinteressadas do contraditório e sem apetite para questionar os fundamentos do regime. Mas aqueles que gostariam de acompanhar a nova Revolução Francesa terão que esperar por uma nova Queda da Bastilha.