Os quase três milhões de leitores do semanário da Editora Abril devem ter levado um susto com duas surpreendentes matérias da última edição (nº 2157, com data de capa de 24/3/2010). Beliscaram-se, apalparam-se, voltaram à capa para ver se o logotipo conferia. Olharam o calendário: o início do outono na Veja sugeria uma primavera.
A primeira matéria, logo no início da edição, brilha nas prestigiosas ‘Páginas Amarelas’ (págs. 15-19), cujo teor, na atual escala cromática da direita mundial, deveria ser apelidada de ‘Páginas Vermelhas’. A entrevista com o economista americano Robert Shiller é um canto de louvor ao guru britânico John Maynard Keynes (1883-1946), um dos pais do welfare state, o estado do bem-estar, criador do conceito do Estado intervencionista, anticíclico, verdadeiro estabilizador da economia.
Inacreditável: quando a entrevista com Shiller foi redigida e escolhida, o presidente Barack Obama ainda não havia consagrado o seu plano de saúde com a vitória sobre os histéricos republicanos. A mídia brasileira babava em bloco com as tiradas idiotizadas de Sarah Palin e entoava em coro as palavras de ordem da nova Ku Klux Klan onde Obama aparece como ‘assassino das liberdades’.
Pecado capital
Com aquela cara de americano tranqüilo, bem comportado, Shiller investe contra as bolhas e afirma que ‘os economistas caíram no autoengano de acreditar na infalibilidade dos mercados e erram ao ignorar o poder do `espírito animal´ [o capitalismo selvagem]’. E vai em frente: ‘A economia é [organicamente] instável e o governo tem um papel relevante na sua estabilização’.
Acham pouco? Quando Keynes publicou sua Teoria Geral do Emprego, em 1936, o mundo estava dividido entre capitalistas e comunistas; Keynes, segundo Shiller, ofereceu uma alternativa:
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‘O capitalismo era o melhor modelo, desde que regulado.’**
‘Um ponto essencial é aprimorar a proteção ao direito dos consumidores. É inconcebível que os governos permitam a comercialização de certos papéis [do mercado financeiro] que embutem riscos sobre os quais os compradores não foram suficientemente informados.’**
‘Não considero que os acertos de Thatcher e Reagan, chancelados pelo contexto histórico em que viveram, possam ser vendidos hoje de forma simplista como a solução para todos os problemas econômicos atuais e futuros.’Nossa, outro terremoto?! Erro de revisão? Demitam o contínuo, é um agente subversivo! Quem inventou este Shiller, alguém verificou a sua ficha, não seria Schüller (aluno), oriundo da Alemanha Oriental como a marxista Angela Merkel?
Shiller não é um desconhecido: está entre os 100 economistas mais influentes do mundo; autor consagrado, tem uma coluna distribuída em dezenas de jornais. A escolha não foi casual, aleatória. Alguém na Redação – ou direção – achou que estas coisas precisavam ser ditas, Veja estava muito repetitiva, chata, parecia tia velha, maníaca.
Resultado: a turma do Instituto Millenium detestou a matéria e Veja está ameaçada de perder cinco assinantes. Na mídia brasileira, Keynes é palavrão, regulação é opróbrio, duvidar de Thatcher, pecado capital. Se a mídia admite a necessidade da regulação da economia, logo uma alma danada proporá a regulação da mídia eletrônica. Vade retro!
Cor qualquer
A segunda surpresa, em página única, ‘Ferveção em Arapiraca’ (pág. 100), trata de um escabroso caso de pedofilia protagonizado pelo Monsenhor Luiz Barboza, 82 anos e um ex-coroinha, agora adulto, ao longo de oito anos. O episódio foi revelado pelo jornalista Roberto Cabrini do Conexão Repórter, do SBT.
Puro sensacionalismo, dirão os fanáticos anti-Veja. Errado: atrás da notícia sobre um escandaloso assédio sexual está a decisão de não se curvar às imposições dos cursilhistas da Opus Dei, a mandona da grande e média imprensa brasileira.
O programa de Cabrini foi veiculado pelo SBT no dia 11 de março – e até o sábado (20/3) em que Veja circulou transcorreram dez dias sem que qualquer veículo nacional procurasse ‘repercutir’ o fato. Mas em Portugal, por causa do SBT, a ferveção de Arapiraca ferveu até na imprensa esportiva. Significa que Portugal, nosso avozinho, é menos católico do que o Brasil? Não: em Portugal a Opus Dei não manda como aqui.
Reconheçamos: esta Veja vermelha ou cor-de-rosa é muito mais surpreendente, instigante e interessante do que a anterior, qualquer que seja a sua cor, roxa ou amarela.